Enxu Queimado/RN, 30 de julho de 2020
Meu caro e bom, Dr. Ronaldo, já vai alto aquele dia em que sentamos sob o frescor assombreado da varada dessa cabaninha de praia, que tomo de conta, e emendamos os bigodes num bate papo sem freio, regado a fartas taças de vinho, algumas doses da mais legítima cachaça paraibana, temperado pelo aroma do malte do whisky de José Augusto Othon, e, para fechar o firo, saboreamos uma das deliciosas moquecas de Lucia. Meu amigo, aquele dia foi demais da conta, e para não esquecer de registrar, ainda ecoa por entre as palhas do coqueiral, a bela trilha sonora do DJ Othon. Show!
Pois, doutor, é muito gostoso receber pessoas de alma leve, coração maior do que o mundo e que trazem na bagagem, além do abraço sincero, muito carinho. Ainda guardo na memória, e sempre digo a todos que aqui chegam, as palavras de José Augusto, quando Sônia o chamou para irem até a beira mar conhecer um pouco mais dessa Enxu mais bela e conferir as paisagens que sempre retrato: “Sônia, vá e me diga se lá está mais gostoso do que essa varanda. Se tiver eu vou, se não tiver nem precisa dizer”. Demos uma boa gargalhada e Sônia nem titubeou, ficou onde estava.
Sabe o que também não esqueço, dos alertas de Lucia quando achava que eu estava falando pelos cotovelos: “Amor, deixe o povo falar também!”. E eu cá comigo: “Deixo não, porque quando vou ao consultório de Ronaldo, ele também fala que só a bixiga”.
Eh, nas poucas horas de meados daquela Primavera, botamos um bocado de assunto em dia e desenterramos outros tantos há muito esquecidos e, para variar, falamos das coisas do mar e das minhas andanças a bordo do Avoante, que sempre atiçou sua curiosidade. Mas confesso que sinto falta de escrever os relatos da vida tive sobre o mar, dos bons e maus momentos, dos amigos que ficaram com o aceno estendido nas pedras do porto, dos leitores que até hoje cobram entristecidos e do envolvimento do abraço constante da natureza, porém, os ventos mudam.
Hoje estou aqui, numa cabaninha de frente para um magnifico coqueiral, pastorando os alísios, sentindo o cheiro de maresia entrar pelas brechas das telhas, lacrimejando os olhos ao avistar o bailar das velas brancas adentrando o mar e sempre que a preguiça permite, desenferrujando o corpo em saudáveis mergulhos nas águas Atlânticas. No dia a dia a bordo do Avoante, a água estava a um palmo da mão, hoje ela está a alguns passos, amanhã não sei, porque aprendi a seguir os ditames que esvoaçam pelas muralhas do castelo do deus do vento e a primeira regra diz assim: Os ventos são infinitamente mais sinceros do que a razão.
Pois é, caro amigo, prestando atenção nos rodopios dos alísios pelo céu de Enxu, sinto a ligeireza das mudanças no cotidiano dessa vilazinha de pescadores. Dia desses foi a implantação da floresta de torres de cata-ventos, criando ânimo novo, afastando a juventude dos segredos e mistérios do mar e inserindo o povoado no seleto círculo da alta tecnologia energética.
Hoje, em meio ao grave movimento pandêmico, o povoado volta a se assanhar com mais uma promessa da construção de uma estrada pavimentada que ligará Enxu a sede do município. Se a estrada vai sair eu não sei, mas a promessa corre faceira por sobre as dunas. Porém, no rastro do projeto surgiu um fantasma, medonho que só vendo, ameaçando o sossego do povoado.
Doutor, me diga se você leu o romance Tocaia Grande, do amado baiano Amado? Aquele romanceio é instigante, divagador e move em nossa alma um senso de maledicente injustiça. Pois num é que agora surgiu um desarvorado, vindo lá das bandas de além-mar, abanando uma papelada e se dizendo dono do lugar, porque pagou dinheirama boa em tudo que aqui está posto.
– Tudo o que cara-pálida? – Vosmecê, com esse palavreado esquisito, comprou uma cidade que existe há mais de 100 anos, foi? – E por mal lhe pergunte: Com a graça de quem? – Seu rapaz, e você vai pagar pelos investimentos públicos existentes na terra que diz que é sua? – E o que dizem os gestores públicos, de ontem e de hoje? – Seu menino, quando tu chegasses com os cajus o povo já estava comendo as castanhas!
Pronto, Ronaldo Dumaresq de Oliveira, meu oftalmologista favorito, está estirado sobre a mesa da varanda mais um catatau de peleja para a gente tirar prova de vista na sua próxima visita a essa terrinha boa de frente para os quadrantes do Norte. Diga a Dona Célia que arrume o bisaco com um amontoado de roupas que dê para um período longo, pois o moído promete tempo.
Grande abraço e já vou apressar a encomenda do peixe.
Nelson Mattos Filho