Enxu Queimado/RN, 08 de outubro de 2019
“…não é só falar de seca, não tem só seca no sertão…”.
Pois é, caro amigo Bardou, assim cantou o poeta cearense enquanto olhava o açudão impanzinar, e hoje, vendo a seca medonha que se avizinha sobre a barra do nascente, estendendo tentáculos em brasa pelos cantos, recantos até se adeitar nas nuvens acolchoadas do poente da terra seca, coberta de uma mata ainda levemente colorida com as cores verdes das chuvas que já vão ao longe, reconheço como uma reza as palavras do poetinha cantador lá das bandas do Orós. Aí você diria: – Mas o que danado tem esse praieiro, aboletado em uma rede sob a sombra de uma varadinha de praia, para se avexar a falar de seca? Falo sim, meu amigo gaúcho, pois é nas paragens desse tiquinho de Nordeste, chamado Enxu Queimado, que se abrem as porteiras de um sertão brabo como espinho de jurema preta, afogueado feito rosto de vaqueiro valente, povoado de boi tinhoso, curtido no sol e no suor do sangue quente, mas entupido de um povo carinhoso que nem manteiga escorregando sobre miolo de pão quentinho.
Navegador, nesse 08 de outubro, que no calendário está marcado como Dia do Nordestino, depois de tomar umas goladas de café, acompanhado de uma pratada de cuscuz com ovo, peguei a estrada poeirenta e me danei no rumo de Caiçara do Norte, terra juramentada e afamada como sendo a capital da pesca artesanal desse Brasil brasileiro, na intenção de comprar uns quilinhos de camarões para Lucia produzir suas delícias gastronômicas. E deu tudo nos conformes, viu, mas ao longo da viagem me vi perdido em pensamentos diante da brabeza do Sol inclemente feito açoite de cipó de broxa. Seu menino, é tanta quentura que chega a tapar os buracos da venta e sem falar nos rodopios dos sacis que riscam o chão espalhando poeira amarronzada no meio do mundo. É bonito ver o ciscado, numa perna só, dos moleques travessos assustando os desavisados e fazendo rir os que reconhecem e respeitam suas estripulias. Tem até quem sinta o cheiro da fumaça do cachimbo e escute o eco dos seus risos. Eu até que tento, mas tem jeito não, fico só na beleza do rebuliço do vento sobre o chão de barro.
Amigo, e por falar em Saci e em pé de vento, digo que os alísios que varrem as praias desse litoral Norte, este ano estão meio desembestados e tem deixando muitos jangadeiros com as barbas de molho. E o mar? Vixi, tem pareia não! Rapaz, o senhor do tridente está mandando ver na festança e os carneirinhos estão tomando conta do oceano até o horizonte que a vista alcança. Éolo ligou os moinhos que sopram do Sul e Sudeste numa velocidade de fazer inveja a madame cruviana e Netuno, rei do reino do mar, puxou a prateleira de vinil e atochou rock pesado na vitrola. A brincadeira, para eles, está boa, mas para o povo do mar, a coisa está esquisita. Dia desses ouvi dizer que os comandantes das belonaves inscritas na REFENO 2019 estão apostando numa velejada gostosa e macia, de Recife até a ilha maravilha, dia 12/10, e tomara que eles estejam certos, pois como diria o velejador pernambucano Guga, talvez o maior colecionador de troféus da REFENO, comandando a fera Ave Rara: – Acho que vai ser punk!
E por falar em REFENO, este ano até que recebi convite, mas olhei para a sombra dessa cabaninha de praia, para a rede espichada na varanda, pedi conselho ao coqueiral, me confessei com os encantados que protegem os navegantes e depois de banhar a alma com umas doses de Rum, preferi ficar quieto e escutar apenas os moídos e festejos que os ventos oceânicos devem trazer de lá para cá. Se a brincadeira vai ser boa? Tenho certeza que sim, pois sempre é!
Eita, meu amigo, agora que estou me dando conta que já dei uma ruma de bordo nessa prosa. Comecei falando em seca, embrenhei pela floresta da caatinga, me deparei com sacis, cruzei a fronteira praticamente inexistente entre as cidades de São Bento e Caiçara do Norte, divididas apenas pelo passar da perna, cutuquei os encantados do mar, me vi diante dos assopros dos deuses dos ventos e temporais, Éolo e Cruviana, e até me avexei a caçar as velas das Naus dos iatistas que em breve cruzaram as águas mornas nordestinas, mas tudo bem, pois a intenção dessa missiva é mandar notícias daqui e entre um papo e outro tem um bocado de trilhas e veredas.
Luiz Achylles Petiz Bardou, amigo que recebi de presente do mar e que guardo com carinho no coração, já completou mais de uma década que você riscou traçado pelas cercanias dessa prainha dos domínios de Poti e já é chegada a hora de vir conferir o que um dia você viu. Venha meu amigo, venha ver a seca que canta, encanta, traz dor, lamento, alegria, esperança, resignação, fé, descrença e como num passe de mágica, transforma tudo em poesia.
Venha ver o mar, o mar do Nordeste, o mar dos alísios, o mar de dunas brancas, mar que encanta e por encanto, transforma tudo em melodia nos acordes de uma viola chorosa sombreada pelas palhas de um coqueiral.
“…se não é seca é enchente/Ai, ai, como somo sofredô/Eu só queria saber/O que foi que o Norte fez/Pra vivê nesse pena…” E assim vai Raimundo Fagner, o poeta cantador.
Nelson Mattos Filho