Os dicionários dizem que fragmentos são partes de algo que foi desfeito, quebrado; pedaços. Aquilo que resta de uma obra antiga. Excertos extraídos de um livro, de um manuscrito, de um discurso; trecho.
Na noite do Natal, 2023, no apartamento do meu irmão, Idio, tive a alegria de rever os amigos Silvério, Maninha, Helinho, Jack, Tiana e a cada abraço de confraternização um belo filme rodava em minha cabeça em rotação acelerada enquanto meu coração disparava. Quando eles se foram, sentei, olhei ao redor e me perguntei: Em qual esquina soltamos as mãos? Decidi que ao sair dali daria uma volta por aquelas ruas, naquele momento solitárias e silenciosas, e tentaria me reencontrar.
Foi tentando colher os pedacinhos perdidos no tempo que segui pelas veredas daquele recantinho do bairro do Tirol, em Natal, balizado pelas ruas General Oliveira Galvão e Ângelo Varela, e parei na esquina entre as ruas Brito Guerra e Almirante Teotônio de Carvalho.
Na esquina que está gravada na história do grupo de amigos e moradores de uma época dourada, desci do carro, escorei no muro da casa que pertenceu ao casal, Sr. José Carvalho e Dona Iaponira, pais de Maninha, Jack e Tiana, olhei para o lado e avistei dois meninos, na faixa de 15 a 16 anos, subindo a ladeira da Brito Guerra, com uma garrafa de 2 litros de vinho Dom Bosco, já pela metade, e entre risos cantavam:“ – Quando eu entro numa farra/Não quero sair mais não/Vou até quebrar a barra/E pegar o sol com a mão…”.
O eco do canto se espalhou nas sombras da noite, os meninos se aproximaram, passaram sem me notar e seguiram rua acima com o cortejo da madrugada. Se havia algum morador na espreita, não se apresentou e nem Seu Murilo abriu a janela para apreciar aquele festejo. Apenas um ou outro vigia noturno olhava, acenava, como a garantir a passagem do cortejo de dois. Olhei a hora e a data, no celular, e por encanto estava registrado, Madrugada de 01 de janeiro de 1977.
Em devaneios observei por um tempo a imagem que se tornava cada vez mais descolorida, os meninos subindo a ladeira, a música sumindo no espaço. Fui despertado pela buzina de um carro que passava, com o motorista talvez curioso por me ver ali solitário na madrugada vazia, desejando Feliz Natal. Acenei de volta, sorri, entrei no meu carro e acelerei embalado pela saudade.
Sabe, Marcelus Bruce, na Noite de Natal, ao sair em busca de fragmentos perdidos, não sei porque, me veio a lembrança daquela nossa confraternização de reveillon, não sei se você ainda lembra, em que caminhamos pelas ruas do Tirol. Ouvi nosso canto, senti o gosto do vinho, o fulgor da nossa alegria, mas não vi o momento em que viramos a esquina para nunca mais viver outro momento como aquele.
Dizem por aí que as esquinas representam o mistério das amizades, porque ninguém até hoje conseguiu decifrar o que acontece quando damos o passo para virá-las. Porque quando queremos retornar, a esquina não é a mesma.
Pensando bem, amigo, talvez o poeta Fernando Pessoa tenha desvendado o mistério das esquinas quando assim escreveu: “Nunca voltarei porque nunca se volta. O lugar a que se volta é sempre outro.”
Nelson Mattos Filho