Arquivo do mês: novembro 2022

De um domingo assim sei lá

01 - Janeiro (61)

“Que liberdade é essa que aprisiona a alma?” Essa frase do velejador e escritor Marçal Ceccon ecoa em minha cabeça de vento desde o dia em que li uma entrevista na qual justificava o desembarque, dele e da esposa, Eneida, do lendário veleiro Rapunzel, barco em que deram várias voltas ao mundo, para viver parcialmente recluso em um sítio no litoral carioca. No momento em que bati o olho na frase uma pontada de desilusão espetou-me o coração, deixando-me sem rumo por longos dias e por mais que Lucia tentasse me fazer compreender as palavras de Marçal, nada daquilo fazia o menor sentindo, mas icei as velas do Avoante e fui desanuviar as ideias pelos segredos e encantos do “grande oceano” de Todos os Santos.

“Que liberdade é essa…” Pois é, tempos depois chegou minha vez de desembarcar do Avoante para retomar as passadas tortuosas do chão de terra e me mandei para uma cabaninha de praia encravada num beicinho de praia, no litoral norte potiguar, com o exótico nome de Enxu Queimado. Mas a vida em terra segue ligeiro, cobra pedágio, é intrincada e num pulo de pulga tudo muda. E mudou!

Hoje, domingo sem sal e sem açúcar, pois sempre achei que os domingos são assim, morando em Natal, cidade de magos, gordos, poetas, bruxas e lobisomens, saí para dar um giro pelas cercanias do Morro do Careca e na maluquice desenfreada e caótica do trânsito, me vi perdido em devaneios e perguntei aos botões: “O que danado estou fazendo aqui?” E num é que eles, os botões, responderam com um riso sarcástico: “Acorde desse transe, homem sem fé, você foi envolvido pela teia de tentáculos do monstro que domina as cidades. Acelere esse carro e siga as placas se não seremos esmagados. Bora, ‘infiliz’, anda! Hihihihihi”.

Poxa, Marçal, juro que passei a compreender a sua frase no momento que pulei fora do Avoante, mas é uma compreensão que não me convence da verdade, porque bastam alguns passos pelas ruas para me indagar: “E isso não é prisão?”

Dia desse, depois de rabiscar uns riscados relembrando da vida no mar, chamei Lucia para conferir o escrevinhado, ela fez cara de quem comeu e não gostou, me olhou e disparou na testa: “Amor, você está preso no passado. Se liberte daquele barco!” Pronto, aquilo foi a pá de cal e sempre que sento nesse computador para juntar letrinhas na tentativa de preencher a página em branco com loas sobre o reino de Netuno e Iemanjá, não consigo sair do primeiro toque. As vezes até sai alguma coisa, mas ao escutar o eco, “…que liberdade…”, aperto a tecla delete, e puf.

Voltando ao meu giro dominical pelas veredas da velha e boa – boa? – Ponta Negra, me vi diante de um bairro sem rosto e sem alma. Tudo ali se apresentava em paisagem distorcida, desfocada, deslocada e em cores berrantes demais, tão demais que chegou a incomodar a retina. Dois carros passaram por mim numa velocidade alucinante, me assustando e fazendo com que prestasse mais atenção na via para não ter o destino apregoado pelos meus botões.

Foi quando descortinou o mar, lá no horizonte avistei uma velinha branca navegando solitária no mar azul soprado por um vento leve. Naveguei naquela imagem com a lembrança de uns escritos que li por entre as veredas dos campos minados das mídias sociais: “Disse um adeus calado…Levantou a âncora…Içou a vela…respirou fundo…viu aquele porto pela última vez…e desapareceu lentamente no horizonte…Partiu sem aviso para qualquer lugar…Longe dali!”

Estou sim com saudade do mar, da sinceridade dos elementos, da ira das tormentas, dos ensinamentos mal-humorados dos deuses, da força monstruosa das ondas, do ardor do sol na pele curtida pelo sal, do gosto da água salgada, das regras ditadas pelos ventos. Saudade do cristalino estonteante das águas abissais e do silêncio das noites. Saudade do céu estrelado e até das cores ameaçadoras das nuvens tempestuosas. Saudade das amizades forjadas no fogo das profundezas oceânicas. Amizades sinceras, tão sinceras que basta apenas um aceno para que se tornarem eternas.

Estou com saudade de mim, homem do mar. Saudade de dizer um adeus calado, de içar as velas, de desaparecer lentamente no horizonte, de partir sem avisar para qualquer lugar, bem longe. Quero retomar a liberdade de aprisionar a alma na prisão do passado.

Nelson Mattos Filho