Destemidas

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Em 2010 o espirito e o sonho aventureiro de três meninas arretadas rendeu moídos nas redes sociais, nas redações dos jornais e o bafafá chegou até as barbas dos tribunais, mas como vontade de adolescente é coisa dura de ser domada, elas traçaram o rumo, subiram a bordo de seus veleiros e se danaram pelos mares.

Nesse cantinho escrevi sobre as aventuras oceânicas das meninas, Abby Sunderland, 16 anos, Laura Dekker, 14 anos, e Jessica Watson, 16 anos, e torci muito. Nem a desventura da Abby, que queria ser a pessoas mais jovem a realizar uma circunavegação de volta ao mundo, mas foi impedida pelos deuses dos oceanos, me fez cessar os aplausos e muito menos tirá-la do rol dos meus ídolos do mar.

Abri o texto sobre Abby, Uma senhora velejadora, com as palavras dela: “Há muitas coisas que as pessoas podem pensar para culpar a minha situação: minha idade, a época do ano e muito mais. A verdade é que eu estava no meio de uma tempestade e não se veleja no Oceano Índico sem passar ao menos por uma tempestade. Não foi a época do ano, foi apenas uma tempestade do sul. Tempestades fazem parte do pacote quando se decide velejar ao redor do mundo. Quando à idade, desde quando a idade cria ondas gigantes e tempestades? ”.

A holandesa Laura Dekker, depois de vários percalços e alguns bordos entre as leis holandesas e portuguesas, porque ela queria levantar velas em Portugal, país que a considerava muito jovem para comandar um barco numa navegada desse porte, o que a fez iniciar a viagem em Gibraltar, território ultramarino britânico sujeito à lei britânica, embora Dekker tenha partido de Gibraltar em segredo para evitar a imprensa e qualquer polícia marítima, concluiu a volta ao mundo numa viagem que durou 518 dias, em 21 de janeiro de 2012. Ela tinha 16 anos e 123 dias.

Jessica Watson, australiana teimosa que nem canguru amulestado, enfrentou a sanha de uma imprensa pitaqueira, rizou as velas para vencer o mau tempo dos tribunais, calou os discursos contrários das casas legislativas, transformou o abalroamento em um navio em traços da rota para o sucesso, soltou as amarras, regulou as velas e partiu mar adentro. Eita menina arretada!

Recentemente, e após 13 anos da navegada histórica e da obstinada Jessica ter cravado seu nome no panteão das heroínas dos oceanos, assisti o filme Destemida, e, além da saudade de reviver os dias diante dos humores destemperados dos deuses Netuno e Éolo, fiquei encantado com a veracidade do roteiro, da produção e até com o personagem Ben Bryante, que não existe na vida real, mas representa todos os amigos e velejadores que se envolveram e se doaram para o sucesso da empreitada.

Me emocionei com as crises existenciais vividas pela personagem enquanto boiava à deriva no purgatório de uma causticante calmaria. Li em seus pensamentos os muitos “o que estou fazendo aqui”, que falei quando, a bordo do Avoante, me via ameaçado e açoitado pelos elementos indóceis, para logo em seguida levantar a cabeça, olhar em volta e ver que a angústia e o medo era apenas fantasias criadas em meus miolos. Cruzei os dedos quando vi os sinais de cansaço e desgaste demostrados pelo casco do veleiro Pink Lady Ella, garota valente, e vibrei quando a determinação da guerreira falou mais alto e ela partiu com uma fita adesiva para os devidos reparos. Barco que não tem armengue não é barco!

Fiquei alguns segundos sem respirar ao ver o poder das ondas que ameaçavam esmagar o Pink e senti meu coração disparar quando avistei a montanha de água e espuma crescendo na popa do veleiro. Fechei os olhos e falei um inaudível PQP quando o monstro olhou para baixo, abriu a bocarra, engoliu o Pink e o levou para as profundezas do oceano até diante do trono do Deus do Mar. Mas o que Netuno queria era apenas conhecer de perto aquela criatura, tão jovem, tão guerreira, tão obstinada e que por ele sempre manteve respeito.

O Pink e sua valente comandante foram devolvidos a superfície mais energizados e com ordens do rei para que todos os oceanos do mundo se acalmassem e lhes rendessem honras.

Jessica Watson escreveu sua história sobre a esteira de 18.582 milhas náuticas, durante 210 dias no mar. Aportou em Sidney, no dia 15 de maio de 2010, porém, pelos critérios do World Sailing Speed Record Council, ela não completou a circunavegação que é de 21.600 milhas náuticas, mas isso não diminui nem pouco a sua glória.

Foi com essas palavras que encerrei o texto que fiz para Abby Sunderland: O mar é uma grande escola e uma grande universidade para a vida das pessoas. Crianças que navegam sozinhas ou acompanhadas pelos pais assimilam rapidamente fundamentos de liberdade, paz, solidariedade, autocontrole, determinação, ética, razão, ecologia, segurança, planejamento e respeito.”.

O filme Destemida, estrelado pela australiana Teagan Croft, atriz que interpretar Ravena na série Titans, merece ser visto por todos aqueles que amam e se encantam pelos mistérios e segredos dos oceanos.

Viva Jessica Watson! Viva o veleiro Pink Lady Ella!

Nelson Mattos Filho

VIVA São José!! VIVA!!!

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Apesar do terror imposto pelas “autoridades” do crime no Rio Grande do Norte, em ações de ataques orquestrados, desafinando e desnorteando o aparato da segurança pública do Estado, o  Dia de São José está sendo festejado com alegria e esperança pelo sertanejo de sangue curtido na casca do alho. Informações dão conta de chuva farta em todas as regiões e já têm açudes e barreiros prestes a botar água pelo ladrão. As lentes dos satélites do CPTEC/INPE indicam que ainda tem muita água para rolar. O dito popular diz que se chover no dia 19 de março, dia que a igreja católica festeja o dia do Santo, pai de Jesus,  venerado também pelas igrejas ortodoxa e anglicana, o inverno está garantido e com ele a fartura da boa mesa nordestina, regado com festança e muito forró.

Aos terrícolas

GERONIMO

O velejador argentino Geronimo Saint Martin, que da vida ao texto Um Grande Velejador, no meu livro, Diário do Avoante, é um mito da vela de cruzeiro e o tenho como um dos grandes – tenho poucos – gurus no fascinante universo da navegação. Recentemente, na sua página do Facebook, ele chamou atenção e listou, num gostoso portunhol, alguns perigos que corre um terrícola ao convidar um navegador para um bate-papo. Para quem não acredita no alerta de Geronimo, basta fazer um teste.

ATENÇÃO TERRÍCOLAS

Geronimo Saint Martin

Os perigos de convidar um navegante para sua casa.

Quando um decide abrir as portas da sua casa para um navegante, tem que saber que corre riscos. O navegante vai estar disposto a compartilhar suas vivências, ensinar um pedacinho do mundo, que talvez, ainda não conhece e cada palavra pode ser transformada em motivação, e precisa ser feita.

PERIGO Nº 1:

Que encha sua casa de anedotas de todo o mundo e você fique flutuando entre nuvens cheias de histórias de continentes distintos.

PERIGO Nº 2:

Que te cozinhe um prato típico do seu país, e te mude para sempre os preconceitos sobre a comida internacional.

PERIGO Nº 3:

Que ele te dê um pedacinho do seu coração e se torne seu amigo.

PERIGO Nº 4:

Que você se torne parte da sua família e que cada vez mais pessoas esperando sua visita em qualquer lugar do mundo.

PERIGO Nº 5:

Que você devolva o direito de confiar nas pessoas, neste mundo que a confiança é quase um mito.

E por último, o mais perigoso de todos.

PERIGO Nº 6:

Que te contagie a vontade de viajar, e que o desejo vá tomando a tua alma até que não haja volta atrás e seja você a que vai lembrar os mares e portos do mundo.

“Na ausência das estações”

 

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E a palavra fica com o anestesista José Delfino, maranhense/potiguar, entendedor do  bem viver e arretado que só vendo. O retrato que ilustra a postagem é de um pedacinho da Rua Dr. Heltor Carrilho, centro de uma Natal ludibriada e esquecida.

“Viver nesta parte do mundo onde eu vivo é algo aprazível e incomum. A felicidade e o infortúnio convivem com a monotonia das horas. A primavera, o verão, o outono e o inverno, avassaladores em suas peculiares características, parecem direcionar e atrapalhar um tanto o tempo. Na ausência das estações “comme il faut”, sempre e só, o sol e a chuva se inserem ao calor senegalesco. A miscigenação racial dá um tom étnico diferente ao ambiente. Entretanto, similitudes culturais imperam. Pareceria que a África Subsaariana é aqui. Herança um tanto atávica, perpetuada por razões ancestrais, não muito bem entendida ou assimilada. Onde ruínas são deixadas como ruínas. Ruas, avenidas, travessas, pontes, becos. Praias, rios e lagos. Nenhum esforço empreendido em contrário. Sobra o sentimento incômodo dos testemunhos das catástrofes. Afinal, viver entre ruínas é como ter o sentido temporal desarranjado. Aflitivo como avistar folhas de zinco, pedaços de cano, banheiras, pias  bacias, garrafas e dejetos perdidos em suas sólidas impotências por toda parte. Sem cuidados adequados, os jardins voltam a ser mato. A beleza das ruas desaparecendo. Trepadeiras e parasitas recobrindo paredes semidestruídas de alvenaria caiada e tijolos ocos de argila. Ervas daninhas fazendo lugares aprazíveis parecerem velhos, como os das civilizações mortas. Mais aflitivo, ainda, esculturas, monumentos e estátuas, como raízes, arrancadas do chão. Os nossos cartões postais desaparecendo de vista no ar, como por encanto. E os pés de bananeiras nascidos ao léu como quê a emoldurar o que restou. Os nomes das ruas sempre sendo indiscriminadamente trocados. Placas exibindo os seus novos epônimos. A superficial, inconsequente e transitória homenagem aos supostos “heróis de ocasião”. Atitude inútil. Afinal, ninguém se importa muito com eles. Resta a sensação de sermos os fantasmas do nosso passado e do futuro. Como se nossas vidas e nossas ambições já tivessem sido vividas e não sobraram nem as nossas recordações como relíquias. Um lugar onde o passado se foi e o que virá pareceria tomar o mesmo caminho. Os dois estragando o dia a dia. E os índices inaceitáveis de pobreza e fome a falarem sobre ele. Um vácuo político horrível. Muito perturbadora a profundidade dessa “raiva africana”. Da destruição da memória das coisas. Em tudo. Me convenci, o Haiti é aqui.”

Sobre sonhos

MIA COUTO

Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo.”

Mia Couto, em “Terra sonâmbula”.

De um domingo assim sei lá

01 - Janeiro (61)

“Que liberdade é essa que aprisiona a alma?” Essa frase do velejador e escritor Marçal Ceccon ecoa em minha cabeça de vento desde o dia em que li uma entrevista na qual justificava o desembarque, dele e da esposa, Eneida, do lendário veleiro Rapunzel, barco em que deram várias voltas ao mundo, para viver parcialmente recluso em um sítio no litoral carioca. No momento em que bati o olho na frase uma pontada de desilusão espetou-me o coração, deixando-me sem rumo por longos dias e por mais que Lucia tentasse me fazer compreender as palavras de Marçal, nada daquilo fazia o menor sentindo, mas icei as velas do Avoante e fui desanuviar as ideias pelos segredos e encantos do “grande oceano” de Todos os Santos.

“Que liberdade é essa…” Pois é, tempos depois chegou minha vez de desembarcar do Avoante para retomar as passadas tortuosas do chão de terra e me mandei para uma cabaninha de praia encravada num beicinho de praia, no litoral norte potiguar, com o exótico nome de Enxu Queimado. Mas a vida em terra segue ligeiro, cobra pedágio, é intrincada e num pulo de pulga tudo muda. E mudou!

Hoje, domingo sem sal e sem açúcar, pois sempre achei que os domingos são assim, morando em Natal, cidade de magos, gordos, poetas, bruxas e lobisomens, saí para dar um giro pelas cercanias do Morro do Careca e na maluquice desenfreada e caótica do trânsito, me vi perdido em devaneios e perguntei aos botões: “O que danado estou fazendo aqui?” E num é que eles, os botões, responderam com um riso sarcástico: “Acorde desse transe, homem sem fé, você foi envolvido pela teia de tentáculos do monstro que domina as cidades. Acelere esse carro e siga as placas se não seremos esmagados. Bora, ‘infiliz’, anda! Hihihihihi”.

Poxa, Marçal, juro que passei a compreender a sua frase no momento que pulei fora do Avoante, mas é uma compreensão que não me convence da verdade, porque bastam alguns passos pelas ruas para me indagar: “E isso não é prisão?”

Dia desse, depois de rabiscar uns riscados relembrando da vida no mar, chamei Lucia para conferir o escrevinhado, ela fez cara de quem comeu e não gostou, me olhou e disparou na testa: “Amor, você está preso no passado. Se liberte daquele barco!” Pronto, aquilo foi a pá de cal e sempre que sento nesse computador para juntar letrinhas na tentativa de preencher a página em branco com loas sobre o reino de Netuno e Iemanjá, não consigo sair do primeiro toque. As vezes até sai alguma coisa, mas ao escutar o eco, “…que liberdade…”, aperto a tecla delete, e puf.

Voltando ao meu giro dominical pelas veredas da velha e boa – boa? – Ponta Negra, me vi diante de um bairro sem rosto e sem alma. Tudo ali se apresentava em paisagem distorcida, desfocada, deslocada e em cores berrantes demais, tão demais que chegou a incomodar a retina. Dois carros passaram por mim numa velocidade alucinante, me assustando e fazendo com que prestasse mais atenção na via para não ter o destino apregoado pelos meus botões.

Foi quando descortinou o mar, lá no horizonte avistei uma velinha branca navegando solitária no mar azul soprado por um vento leve. Naveguei naquela imagem com a lembrança de uns escritos que li por entre as veredas dos campos minados das mídias sociais: “Disse um adeus calado…Levantou a âncora…Içou a vela…respirou fundo…viu aquele porto pela última vez…e desapareceu lentamente no horizonte…Partiu sem aviso para qualquer lugar…Longe dali!”

Estou sim com saudade do mar, da sinceridade dos elementos, da ira das tormentas, dos ensinamentos mal-humorados dos deuses, da força monstruosa das ondas, do ardor do sol na pele curtida pelo sal, do gosto da água salgada, das regras ditadas pelos ventos. Saudade do cristalino estonteante das águas abissais e do silêncio das noites. Saudade do céu estrelado e até das cores ameaçadoras das nuvens tempestuosas. Saudade das amizades forjadas no fogo das profundezas oceânicas. Amizades sinceras, tão sinceras que basta apenas um aceno para que se tornarem eternas.

Estou com saudade de mim, homem do mar. Saudade de dizer um adeus calado, de içar as velas, de desaparecer lentamente no horizonte, de partir sem avisar para qualquer lugar, bem longe. Quero retomar a liberdade de aprisionar a alma na prisão do passado.

Nelson Mattos Filho

Endurance – O livro, uma história

ENDURANCE..

“Está quase no fim… O navio não vai aguentar está vida, comandante. É melhor se preparar, pois é só uma questão de tempo. Ainda pode levar meses, só algumas semanas, ou mesmo dias… mas o que o gelo prende, o gelo não larga mais.” Sir Ernest Shackleton

Em uma tarde do Verão de 2014, ao caminhar pelo píer do clube náutico Angra dos Veleiros, em Salvador/BA, para acessar o veleiro Avoante, embarcação que naveguei e morei por mais de onze anos, cruzei com o velejador Doriva Rizzo que falou: “Nelson, gosto das suas fotos e dos seus escritos sobre as coisas do mar e vou lhe emprestar um livro maravilhoso sobre a viagem do Endurance, mas só não sei onde está” Demos boa risada e seguimos cada um para o seu barco.

À noite, enquanto tomava uma das muitas cervejas cu de foca, manuseadas no capricho e servidas com um sorriso vaidoso pelo saudoso João do Angra, no pequeno e aconchegante bar e restaurante Vento em Popa, localizado no clube, comentei com o João sobre a promessa de Doriva e ele disse: “Ó paí, o livro está comigo. Ele me emprestou e ainda nem li, mas já já lhe entrego”. O “já já” só se concretizou no final de agosto de 2015.

Não pergunte o motivo, pois juro que não sei, mas em vez de colocar o livro na biblioteca de bordo do Avoante, coloquei numa caixa de livros, já lidos, que iria levar para guardar na casa de minha mãe, em Natal, na primeira oportunidade que tivesse para rever a família. Em 2016, ano que vendi o Avoante e retornei para Natal, peguei todas as tralhas que estavam na casa de Ceminha, minha mãe, e levei para a casa na praia de Enxu Queimado/RN. Em março de 2021 voltei a residir em Natal, em maio peguei Covid 19 e durante os dias da quarentena li praticamente um livro por dia e na falta de títulos novos, abri aquela caixa e reli alguns. Fiquei livre da doença, voltei a comprar livros, peguei alguns emprestados e fechei novamente a velha caixa.

Neste ano de 2022, em 5 de março, dia do 100º aniversário de morte de Sir Ernest Shackleton e 107 anos após naufragar no Mar de Weddell, na Antártida, o navio-veleiro Endurance foi encontrado a 3 mil metros de profundidade e segundo os arqueólogos marinho que participaram da expedição de busca, em condições tão perfeitas que se parecem como no dia que afundou.

Ao saber do achado do naufrágio, passou um filme na minha cabeça e lembrei do bate-papo que tive com Doriva sobre o píer do Angra dos Veleiros. Lembrei das palavras de João e até do dia em que ele me repassou o livro. Mas onde estaria aquele livro? Vasculhei a velha caixa de livros já lidos e lá no fundo estava o Endurance – A lendária expedição de Skackleton à Antártida, de Caroline Alexander.

Debulhei as páginas quase que num fôlego só e a cada página me perguntava o porquê de não ter lido antes. Já tinha lido outros livros sobre a expedição, inclusive o mais famoso, A incrível viagem de Shackleton, mas o livro de Caroline Alexander é fantástico. Recheado com fotos inéditas de Frank Hurley, tripulante e fotografo oficial da lendária Expedição Transantártica Imperial (1914–17) e com textos pinçados dos diários de bordo de vários tripulantes, o livro de Caroline é maravilhoso e consegue transportar o leitor através do tempo para reviver a saga daqueles homens feitos de rocha inquebrável. Homens que não atingiram o objetivo da viagem, mas que ficarão para sempre cravados no panteão dos grandes homens do mar. Vinte e oito super-homens enfrentando por mais de dois anos as terríveis intempéries do mais cruel habitat do planeta Terra, sem nenhuma baixa, sem magoas, com alguns resmungos, com disciplina e incrivelmente focados na arte da sobrevivência coletiva.

Ao serem resgatados e voltarem aos países de origem, a maioria dos tripulantes do Endurance nunca mais se falaram e nem se viram. Alguns retornaram a Antártida em outras expedições, como foi o caso de Frank Hurley, que voltou para fazer novas fotos e tentar resgatar momentos vividos e de Sir Ernest Shackleton, que faleceu aos 47 anos a bordo do navio Quest, de ataque cardíaco, enquanto estava ancorado na Geórgia do Sul e lá foi enterrado por autorização de sua esposa. O último tripulante a morrer foi Lionel Greenstreet. Os jornais anunciaram sua morte em 1964 e ele com sarcasmo e prazer desmentiu dizendo que tinham anunciado seu obituário muito cedo. Greenstreet morreu em março de 1979, aos 89 anos.

Obrigado Doriva, por ter me confiado seu livro maravilhoso por todo esse tempo, mas confesso, envergonhado, ter esquecido de ler, mas o fiz em uma data em foi acrescentada mais uma página na lendária história do Endurance e seu “Chefe”.

“Jamais para mim a bandeira abaixada, jamais a última tentativa” Sir Ernest Shackleton

Nelson Mattos Filho

Nanã

MARGARETH

Eh, Nanã, há mais ou menos sessenta dias lhe vi pela última vez e desde lá guardo com muito carinho aquele dia, porém, com uma pontada de ressentimento, porque ao sair de seu apartamento, ainda quis voltar para lhe dar um abraço, pedir um café apenas para ficar momentos a mais, ou até mesmo tomar um copo d’água, mas não, entrei no carro e voltei para casa.

Naquele dia você me pediu para ir a sua casa trocar o garrafão de água mineral que havia acabado e João estava viajando. Respondi que iria no período da tarde, porque naquele momento estava muito ocupado. Você disse que não tinha tanta pressa, pois restavam duas garrafas com água. Passei a manhã encucado achando que haveria outro motivo para o seu pedido e assim que desocupei fui imediatamente. Aliviei o coração quando vi que não existia outro motivo, era mesmo para trocar o garrafão, sorri por dentro e pensei: “Coisas de Margareth. ”

Mesmo ressentido em não ter voltado para um papo a mais, retornei para casa feliz e a noite comentei com Ceminha que tinha ido a sua casa trocar o garrafão de água mineral. Ceminha deu uma risada e comentou: “Coisas de Margareth.” Rimos os dois. Poxa, Nanã, como me senti feliz naquele dia e nem imaginei que apesar de nos falarmos diariamente, até mais do que duas vezes, aquele tinha sido nosso último encontro.

Hoje faz trinta dias da sua morte e não consigo acreditar que você nos deixou. Ainda escuto suas palavras, seus conselhos, vejo seu andar tranquilo, sinto seu olhar frágil e sempre vigilante. Na ânsia da saudade, todas as manhãs, vasculho o telefone em busca do seu Bom Dia, mas ele não está lá. Quanta saudade, minha irmã! Quanta saudade! Até quando viverei essa busca?

Nosso Senhor Jesus Cristo sabe da minha angustia e revolta quando fiquei sabendo que a doença tinha voltado e você estava novamente naquele hospital. Ele ouviu minha revolta em ensurdecedores gritos silenciosos, mas não disse nada, apenas durante a noite acalmou meu coração e amanheci calado e com o coração doloroso. Se Ele perdoou e se um dia perdoará minha ira, não sei, mas Ele me fez calar e, como penitência, me levou a 15 longos dias de reflexão, até o finalzinho da tarde de 09 de agosto de 2022, quando recebi mensagem de Marília dizendo que você estava na UTI em estado muito grave. Naquele momento eu já sabia, Nanã, não sei como, mas eu já sabia. Fui correndo para o hospital, mesmo tendo a certeza que não a veria. Sentei com Fabio, seu genro, num banco do jardim do hospital, tentando refrescar a cabeça, e quando Marília saiu da visita, chorando e ainda fazendo planos para a visita do dia seguinte, eu sabia que não teria mais visitas. Aquela havia sido a última. Ao chegar em casa comentei com Lucia que você não estava mais entre nós. Não chorei! À noite, 22 horas, você se foi! Não chorei!

Na sua missa de Sétimo Dia recebi do Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas palavras do padre Francisco Fernandes, as respostas ao momento de revolta que tive para com Ele. Baixei a cabeça e chorei, Nanã, e continuo chorando até hoje, por você, por Ele, por minha pouca fé, por ver Ceminha, ali sentada, em frangalhos mas firme como uma rocha, escutando o padre, tão resignada, tão fiel, tão triste, tão frágil, tão forte. Deus se materializou sobre nossa Mãe, pois era para ela que o olhar do padre Francisco se dirigia e pedia permissão para prosseguir falando em palavras transparentes me mostrando o quanto eu estava errado. Ele não tinha tirado você da gente. Ele tinha livrado você de todo mal que consumia sua carne, sua alma e lhe colocado no reino dos anjos protetores para que sempre olhe por nós. Deus é grande, minha irmã, e você sempre soube disso, por isso nunca esmoreceu, nem vacilou diante da dor.

Por isso, Nanã, você estava tão serena e aparentando felicidade sobre aquela mesa fria. Foi uma força arrebatadora que me fez ir até aquela sala, junto com Roseani, João, Emerson e Luciano Pirinha, fazer o reconhecimento do seu corpo. Senti naquela sala um clima de paz espiritual, de amor, de resignação, de cura e um mistério encantador. Um frescor de paraíso e a sensação de que alguém segurava em sua mão. Não teve choro, não teve desespero, teve apenas as palavras de Roseani pedido que você seguisse confiante, curada e feliz ao lado de Nosso Senhor, que estava ali, pronto a te levar pelo caminho de luz.

Eh, Margareth Lopes Mattos, minha Nanã, a dor da falta que você nos faz não cabe na imensidão dos maiores dos “Margareeeeeth”, mas seguiremos confiantes nos desígnios de Deus, pois somente Ele nos dá a paz e o remédio que cura a dor que dilacera nossa alma.

Em nome de minha Mãe, dos meus irmãos, da sua filha, da sua netinha linda, do seu amado João e de todos aqueles que lhe querem bem, deixo aqui um grande e carinhoso beijo.

Obrigado minha irmã! Sempre lhe amarei!

Nelson Mattos Filho

Vá em paz Rainha Elizabeth II

RAINHA ELIZABETH

“Sempre foi fácil odiar e destruir. Construir e cuidar é muito mais difícil.”

                                                             Rainha Elizabeth II

“Conto do Vigário”

PADRE

“Cuidai para que ninguém vos iluda” (Lc 21, 8). Nesse tempos de promessas e rinhas eleitorais nada melhor do que se apegar e refletir nas palavras do Padre João Medeiros Filho, seridoense das paragens abençoadas por Sant’Ana, Mãe da Virgem Maria e avó de Nosso Senhor.

“O conto do vigário” é bem antigo. Pode-se encontrá-lo nos primórdios da história. Segundo estudiosos de literatura, faz-se presente na metáfora de Adão e Eva. É possivelmente a sua primeira manifestação. Considera-se como texto precursor a narrativa da serpente, induzindo Eva a comer do fruto proibido (Gn 3, 1ss). Outro relato bíblico (com algumas adaptações) nessa direção seria o episódio de Jacó, enganando o sogro Labão. Propôs a este que lhe desse os filhotes de cabras que nascessem malhados. Ele concordou, certo de que muitos teriam uma só cor. Jacó elaborou um plano. Pegou algumas varas de plátano, deixando expostas as partes claras e escuras e colocou-as perto das gamelas com água. Quando as cabras iam beber o líquido com os cabritinhos, Jacó aproveitava para tingi-los. Sua esperteza teria sido uma revanche contra o pai de sua esposa Lia, o qual não lhe dera em casamento a filha caçula Raquel, por quem era apaixonado. (Gn 30, 25 ss).

Na língua portuguesa há várias versões sobre a origem da expressão. Uma delas é brasileira. Origina-se na disputa de dois padres pela posse de uma bela imagem da Virgem Maria. Os presbíteros eram titulares respectivamente das paróquias de Nossa Senhora do Pilar e Nossa Senhora da Conceição, de Ouro Preto (MG). O primeiro sacerdote propôs ao colega amarrar a escultura sobre um burro. Onde este parasse, ali ela ficaria. Acontece que o pároco de Pilar era o dono do animal, acostumado com o caminho da igreja paroquial. Intitularam a história de “conto do vigário.”

Outras versões são mais antigas e vêm de Portugal. Existia um falsário, comerciante de gado, oriundo do Conselho de Ribatejo, denominado Manuel Peres Vigário. Os casos de dolo passaram a ser chamados “conto do vigário”, em alusão ao sobrenome do fazendeiro, mentiroso contumaz. Há outra variante, proveniente da região do Minho. O cura de uma freguesia costumava encomendar aos carpinteiros os bancos para a matriz. Na hora de pagar, o padre dizia-lhes: “Deus vos pague.” E assim enganava os artífices. Na aldeia, qualquer história semelhante passou a ser denominada “conto do vigário.” O apóstolo Paulo já advertia os cristãos de Éfeso: “Portanto, abandonando a mentira, cada um diga a verdade a seu próximo, pois somos membros uns dos outros” (Ef 4, 25).

Com o decorrer dos anos, as ações dolosas vão sendo capituladas em lei. Na legislação brasileira preveem-se punições para os que cometem tais atos com o intuito explícito de ludibriar o próximo. Os comportamentos e hábitos sociais evoluem. E assim, criou-se entre nós outro tipo de “conto do vigário”, mais abrangente e deletério: o eleitoral. Este é sutil, sofisticado, arquitetado por especialistas, além de ser custeado com o dinheiro dos contribuintes (Fundo Partidário). Verifica-se tal postura em certos candidatos a cargos eletivos. No Brasil, vem se transformando em tradição. Dos relatos bíblicos, infere-se que conduta análoga existia na época de Cristo, a ponto d’Ele advertir seus discípulos: “Cuidai para que ninguém vos iluda” (Lc 21, 8).

Com a propaganda eleitoral em curso, não faltarão falas burlando os eleitores. Vários autores têm consciência de suas atitudes. Embora com exceções, não se constatam sanções legais aplicadas a essas práticas. À luz da ética e da justiça, trata-se de um dano social ou coletivo, além de ser uma inverdade, incluída no oitavo mandamento do decálogo judaico-cristão. Cabe lembrar as palavras do Evangelho: “Vós tendes por pai o diabo e quereis fazer os seus desejos. Ele é homicida e não permaneceu na verdade. Quando profere mentira, fala do que lhe é próprio, pois nele não há verdade.” (Jo 8, 44). Iludir e prometer o que não se vai cumprir, esconder objetivos impopulares são alguns dos engodos que costumam circular em programas e pronunciamentos de candidatos. “Mentir, mentir, alguma coisa ficará” (segundo Voltaire), parece ser o mantra preferido de muitos pretendentes a cargos públicos. O Brasil, um país de tradição cristã, demonstra ignorar as palavras da Sagrada Escritura: “Para mim não existe alegria maior: saber que meus filhos trilham os caminhos da verdade” (3Jo 1, 4).