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Cartas de Enxu 83

12 Dezembro (52)

Enxu Queimado/RN, 24 de fevereiro de 2021

Eh, os caminhos de se caminhar são tantos e tão cheios de surpresas, que jamais adivinharemos o que existirá ao dobrarmos a próxima esquina, mesmo que todos os dias façamos o mesmo percurso.

E assim, as Cartas de Enxu chegam ao fim após 4 anos de contos, fatos, coisas e muitos moídos que marcaram o cotidiano em um dos mais bucólicos povoados praieiro do Rio Grande do Norte.

Queria chegar ao número 100, mas a vida mansa, preguiçosa e por vez laboriosa desse escrevinhador que se dividia entre apreciar o belo quadro natural exposto pela paisagem do coqueiral, com o mar servido de fundo, e a produção artesanal das melhores “pizzas do universo” – pois já disse aqui que criança não mente –, não deixaram cravar a meta. – Será desculpa? – E das esparradas!

O que seria mesmo a pretensão da tal meta diante de uma comunidade pesqueira tão verdadeiramente Brasil? Sempre disse aos amigos, que se refestelavam sob o assombreado da minha cabaninha de praia, que em Enxu Queimado eles estavam no Brasil real e muitas vezes eles achavam graça e brindávamos quando eu nominava o belo recantinho de litoral como, “República Independente de Enxu Queimado”.

O número 83 é o ponto final em uma sequência, mas não dará fim aos escritos dos causos e moídos trazidos e levados pelos alísios em estágios temporãos. Muita coisa boa, muito riso, muito choro, muitas saudades estão arquivadas em minha cachola e não pretendo que fiquem esquecidos sobre os escombros do tempo.

Como deixar passar em branco a estória libidinosa de um coco e uma carne de porco bem lisinha? Como esquecer a peleja do pescador contra sete surrupeios que embarcaram em sua jangada? E a agonia do morador que sempre que chegava em frente de sua casa, depois de uma bebedeira, pedia aos gritos pelos encantos da esposa? E o pescador que só ia pesca depois de ver do beiço da praia aonde estavam os peixes? E as paneladas de galinhas “roubadas”? Não, não posso deixar de lado a riqueza hilária da história de um povo.

Enxu Queimado, segundo uma faixa colocada no centro da comunidade, existe porque persiste, porém, não concordo com ela, apesar de ser favorável a luta dos que ali vivem, pelo reconhecimento e normatização territorial, porque sei que a bela prainha, que tem um lindo coqueiral como sua mais fiel impressão digital, existe pela beleza de seu mar, pela fascinante faixa de praia, pelas dunas apaixonantes, pelo seu povo alegre, acolhedor e festeiro, pela magia de suas ruas, becos e vielas, pela cor do seu céu, pela maciez dos seus alísios, pela riqueza da produção do seu pescado, pelo navegar de suas embarcações e principalmente pela nobreza do coração de seu povo.

Enxu Queimado requer apenas um pouquinho de atenção e muita responsabilidade nas ações dos seus governantes para que se torne, num futuro próximo, um novo porto para o mais fino turismo nacional. No pórtico de entrada em Pedra Grande, sede do município, está escrito, O Brasil começou aqui, é começou mesmo, mas felizmente não progrediu o necessário e ainda é uma terra em estado bruto. Hoje, depois de mais de 500 anos, bem que poderia se lapidar, retomando os passos do progresso, colhendo frutos que deram certo por aí e deixando de lado as ervas daninhas.

Deixo aqui o meu abraço a um povo acolhedor que há trinta anos recebeu a mim e a Lucia, com muito carinho, nos abraçou e nos fez parte de suas famílias quando decidimos, em 2016, estabelecer residência em Enxu e ter dado vida a Avoante Pizzas e Saltenhas, um empreendimento que se propôs a oferecer o melhor da gastronomia e atendimento diferenciado a pequena comunidade.

Aos amigos, aos endereçados das Cartas e aos leitores, agradeço a atenção e mais uma vez os convido a conhecerem um dos poucos paraísos litorâneos ainda existente no Rio Grande do Norte.

Seguiremos a sina das avoantes, aves migratórias, caminharemos por novos campos, seguiremos por novos rumos e levaremos a certeza da volta em alguma Estação Ano.

– Você já foi a Enxu? – Não! – Então vá!

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 82

1 Janeiro Fevereiro (206)

Enxu Queimado/RN, 07 de fevereiro de 2021

Meu caro, Adenor, como vão os moídos desse Verão, meio sei lá e sem muitas querenças, pelas terras dos tupinambás? Por aqui, aldeias dos potiguares, tudo vai indo como querem os desejos dos deuses da natureza, se bem que, nas ocas da pajelança, o caldeirão não para de ferver e quanto mais mexe, mais o pirão desanda. Mas fazer o que, num é não? Como diz nosso amigo “Pedim”, se guiando pelos ensinamentos de Chicó: “Num sei, só sei que é assim” .

“Má rapaz”, hoje dei por fé que já faz um tantinho de tempo que não me avexo a escrevinhar as cartinhas de Enxu, se bem que tenho desculpa a dar, mas são tão esfarrapadas que é melhor deixar quieto e seguir no seguimento. Segundo Lucia, o nome dessa doença do esquecimento se chama facebook ou whatsapp. Aliás, nem me atrevo a duvidar, mas me achei nas entrelinhas das palavras do jornalista Rubens Lemos Filho: “Texto é fruto de massa cinzenta, de criação, pensamento. Tratá-lo é missão, jamais mera tarefa”. Pronto, já tenho uma boa desculpa para minha falta de regularidade, se bem que, Rubinho é craque no time das letras e eu não pego nem o banco em time de várzea.

Adenor, não sei aí, terra de tambores e afoxés, mas aqui deram um escanteio no Zé Pereira, nos pierrôs e nas colombinas que não ouvimos nem o eco dos ensaios dos clarins. O virulento, que espalhou azedo no mundo, deu um cangapé tão desconcertante nos foliões que nem as Putas de Segunda se atreverão a botar boneco pelas vielas desse povoado. Ouvi dizer, a boca pequena, que vão empurrar tudo quanto é festança para os terreiros de São João. Se vai vingar eu não sei, mas se vingar, o fogaréu vai ser de torar dentro, com neguinho dançando descalço dentro da fogueira.

Mas vou dizer, o amuo da galera no beiço de praia está grande e não tem quem entenda o motivo do Barrosão ter ordenado armar o circo da política, em 2020, e dois pulos depois, seus pares no olimpo abençoarem o fechamento das passarelas de Momo. Isso num é coisa feita para confundir o cabeção? Claro que é!

Meu Carnaval vai acontecer do jeito que sei fazer e aprendi com Seu Nelson e Dona Ceminha, vai rolar na caixa uns frevos rasgados com naipes de metais e guitarras baianas, uns sambas de avenida, umas marchinhas, maracatus e axés da velha e boa Bahia, porém, tudo dentro do meu cercadinho e seguindo no passo macio de folião obediente as regras dos homens.

Na verdade, queria mesmo era vestir uma fantasia de papangu e sair por aí de beco em beco, de rua em rua, levando alegria e diversão de casa em casa. Sei que iria ser divertido, mas o perigo é dar de cara com a patrulha do sargento Marcelo e ouvir ele dizer assim: – Ei, papangu, tá pensando que vai pra onde? – Volte pra casa, cabra de peia!

Por falar nisso, lembrei de um médico natalense que, em um Carvanal das antigas, pegou uma colombina e, para passarem despercebidos em meio a folia, se fantasiaram de papangus e saíram num passo manhoso atrás de uma troça. Passo vai, passo vem e se achando bem escondido por trás do capuz de pierrô, alegrava a vida com fartas doses de whisky. Lá para as tantas, alguém cochichou em seu ouvido: – Tá por aqui, hein doutor! Ele sem se alterar, pegou no braço da colombina e no passo que ia, se foi.

Pois é, amigo, dizem que este ano não vai ter Carnaval, mas a vida, apesar dos pesares covidianos e da desfaçatez dos caciques, ainda nos permite chafurdar no bem bom sem olhar para trás e muito menos para a frente.

Meu pai gostava de dizer que um Carnaval perdido jamais seria recuperado. Mas ele era um folião nato e nem posso imaginar o que faria diante desse quadro de restrições pandêmicas. Só sei que no comecinho da manhã do sábado, ele pagaria o trombone de vara, que tocava como nenhum outro trombonista jamais tocou, e mandaria ver com o Frevo Vassourinhas. Eita que Seu Nelson Mattos faz falta, viu! Quanta saudade!

Adenor Mariano Junior, amigo que ganhei de presente dos amigos do mar, faz tempo que você não dar o ar da graça por essa Enxu mais bela. Digo que a estrada é a mesma, como é o mesmo o aconchego dos alísios sob a varadinha dessa cabaninha de praia. O mar que banha esse pedacinho de paraíso continua abençoado e nesse meio de Verão, as bicudas, cavalas e serras estão chegando gordas por demais.

Venha, amigo, e venha logo, porque muito em breve os ventos deverão mudar e com eles tudo muda, pois foi assim que aprendi nos escritos dos segredos do reino de Netuno.

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 81

 

10 Outubro (161)

Enxu Queimado/RN, 19 de dezembro de 2020

Greicinha, como vai caminhando a vida nos planaltos e serrados desse imenso Brasil de altos e baixos? Aqui, na beira do mar, o moído vai sendo digerido do jeito que dá e pode, mas tendo goma de tapioca, cuscuz, farinha e peixe para a mistura, tá tudo beleza e festejado com uma branquinha ou uma caixinha de louras “escumosas”.

Mas digo que continuamos sob a crueza da ditadura covideana e sendo regidos pelas leis e ordens de uma tal segunda onda sem nem ao menos botarmos a cabeça fora d’água para tomar fôlego dos efeitos da primeira. Tenho na ponta da língua o pitaco de que não existiu primeira onda, segunda e nem existirá as próximas e que o tal chinesinho sanguinolento acha é graça da nossa petulância em procurar motivos para encobrir nossas irresponsabilidades.

Ora, o vírus do mal está aí e ficamos brincando de ondinhas, de trocar acusações tolas, de colocar panos mornos na ferida alheia, de olhar a dor dos outros até a fronteira do nosso nariz, de amealhar créditos políticos para o bolso dos nossos candidatos de estimação e de achar que nada pode acontecer com a gente e quem quiser que se amarmote com os apetrechos de proteção.

Não, Grace, não caio mais na tentação de trocar golpes de espada com quem enxerga o mal apenas pelos quadrinhos – cópia, cola – das redes sociais e nem me alio ao cordão dos que querem invadir a avenida com banda de instrumentos desafinados, regidos por maestros toscos e que só querem tocar fogo no asfalto para poder tirar um retrato, postar no perfil com uma frase irada copiada de uma cartilha guerrilheira qualquer.

Nas redes sociais que me abestalho participar, escrevo meu pensar e me recolho ao primeiro sinal de que espetei, mesmo tendo essa intenção, a ideologia ou crença de terceiros, porque há muito deixamos para trás a arte do diálogo, da reflexão, da maravilha do pensar diferente, do gostar dos sabores adversos e diversos, da paz. Não temos mais paz. Perdemos a razão de ser. Perdemos o foco do zelo pela vida do outro. Não conseguimos ver nada além de nós.

Sobrinha, não foi a Covid-19 que nos deixou assim, pois há muito entramos nesse processo de autoflagelo, automutilação. O terrorista apenas nos mostrou o quanto somos terrivelmente malcriados, irresponsáveis. Incrivelmente petulantes, donos de uma verdade que nem ao menos conhecemos uma vírgula e governados por verdadeiros gênios do mal que vislumbram o poder a todo custo, e nesse custo, está incluído até caminhar de mãos dadas com a peste.

Não queria e nem pretendia escrever essa cartinha falando de coisas tão maléficas a alma, mas hoje, um sábado que marca os últimos passos para os festejos do nascimento do Menino que veio a mundo para anunciar boas novas, ao sentar diante da telinha em branco para ajuntar letrinhas, me enchi de angústia ao saber as últimas da carnificina que se espalha mundo afora. Quanta crueldade!

Não, não foi para isso que o Menino, iluminado pela Estrela de Belém e Anunciado por todos os anjos do Céu, veio viver entre nós. Logo Ele, que trazia em seu peito o pulsar de um novo mundo. Que tinha o choro da esperança. Que sabia, que um dia deixaria encravada no coração dos homens a Cruz da salvação. No alto da Sua altivez e ainda deitado em sua manjedoura, Ele trazia a cura para todos os males, a mão estendida para nos tirar da beira do abismo, o líquido para matar a nossa sede. Sob a sombra da cabaninha de palha e embalado pelo conforto rústico do seu berço, Ele se cercou de humildade, justamente a humildade que hoje desprezamos.

Não temos a humildade de reconhecer nossos erros, de reconhecer a fúria das doenças, das desgraças. Não temos a humildade de olhar para o outro com um olhar de amor. Não temos a humildade de ouvir, de calar, de respirar, de respeitar, de sentir que ferimos e nem de sermos feridos quando precisamos ser, porque esquecemos a humildade em alguma curva da estrada e focamos apenas no pragmatismo delirante da economia. Mas a humildade está lá, paciente a esperar a redenção da nossa consciência.

Eh, Grace Benfica Matos, hoje sentindo o calor do sol que amorna essa Enxu mais bela e apreciando o bailar do coqueiral sob a brisa dos alísios, me sinto entristecido, mas não desesperançado. Muitos amigos perderam a luta, muitas vidas ficaram perdidas no campo de batalha, tantas outras ainda cairão diante da foice de fogo do terrorista pestilento, mas a grande maioria dos combatentes saíram machucados, porém, vitoriosos. Temos que levantar a cabeça e seguir em frente com a bandeira hasteada do ensinamento, pois assim nos ensinou o Menino.

Antes de colocar o ponto final, desejo-lhe um Feliz Natal e digo que o que mais dói é ouvir o grito estridente dos hipócritas, potenciado pelo megafone da justiça, justiça essa que nada vê, mas segundo dizem por aí, faz acordos que é uma beleza. Para eles!

Um beijo!

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 80

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Enxu Queimado/RN, 13 de dezembro de 2020

“…Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro – seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada – para viver um grande amor…”

Eh, Amor, assim o poeta, poetinha, camarada, com muita genialidade, entre tantas, rabiscou um dos versos de um dos mais apaixonantes compêndios para se viver um grande amor e eu, sem mais a acrescentar peço licença ao poeta, que hoje vive no Céu de Nosso Senhor, para me atrever acrescentar que para se viver um grande amor, é preciso amar muito além da eternidade é olhar para a amada com olhar de quem nada pede, mas com o brilho de quem tudo dá.

Para se viver um grande amor, não precisa se desmanchar em carinhos, porque o carinho já está diluído na essência de um grande amor. Não é preciso palavras bonitas, porque elas já estão entrelaçadas em uma só alma. Não é preciso presentes caros, nem baratos, porque, na essência, o amor é o mais valioso dos presentes e é para todo o sempre. O amor não é escrito pelos deuses, o amor é uma folha em branco onde precisamos todos os dias colocar vírgulas, exclamações, interrogações, entre elas algumas poucas palavras, mas nunca o ponto final.

Tá vendo, meu Amor, com “A” maiúsculo, o que faz os aprontamentos das setas do cupido? Faz a gente se avexar a meter a colher no caldeirão efervescente do mundo fascinante dos poetas. Nos faz colher as flores mais lindas dos jardins poéticos, transformando-as em sombras de felicidades. Nos faz pedir bênçãos ao mundo e união aos povos. Nos faz sentir o frescor que vem dos oceanos da alma, em fogo abrasador. O amor faz ver a claridade em meio a escuridão e nos guia com ternura, apaziguando o coração em meio as tempestades.

Uns meninos da Bahia, do tempo em que se cantava com o coração, contam que o amor é como a flor de água, ar, luz e calor, que para viver, precisa de emoção e de alegria e tem que regar todo dia. Pois é assim, meu Amor, que todos os dias, acordo é rego o nosso jardim e dele cultivo as mais belas flores, os mais doces frutos, as mais lindas folhagens. Como é gostoso te amar! Como é gostoso viver esse amor que já ultrapassou a fronteira das três décadas com a intensidade da juventude. Como é gostoso, ao amanhecer, olhar para você e dizer: Bom dia, minha vida!

Neste domingo, em que colho flores de um lindo amor, fico a matutar na tristeza de um vaqueiro infeliz, desses que dedilham sua sanfona pelas paragens dessa Enxu mais bela, quando ele diz que tem medo de se entregar e de se apaixonar. Que tristeza deve ser a vida desse cantador que tem medo de amar, mas passando a vista no quadradismo dos versos da sua prosa, vejo que falta coragem ao vaqueiro. Quem sabe, talvez, ele não tenha escudo a poesia de Vinícius, quando diz que para viver um grande amor direito, não basta apenas ser um bom sujeito, é preciso também ter muito peito….É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que – que não quer nada com o amor. Eh, já não se faz vaqueiro como antigamente!

Lucidalva Silva dos Santos Mattos, Lucia, o amor que sinto por você é para sempre, deverá se estender muito além da eternidade e cruza os horizontes da razão. Quisera eu que Vinícius de Moraes, o bom filho de Oxalá, tivesse vivido um grande amor tão perfeito, que sente falta mesmo estando perto. Que tem saudade mesmo estando de mãos dadas. Que não vê a hora das horas passar, porque não se permite que ela passe.

Lucia, neste dia de Santa Luzia, que me iluminou os olhos para viver um grande amor, desejo-lhe muitas felicidades, muita paz em seu coração do tamanho do universo e receba um, apenas mais um dos tantos que lhe dou diariamente, beijo.

Parabéns, meu Amor, e mais uma vez me socorro ao bom Vinícius para dizer que, para viver um grande amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fieldade – para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 78

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Enxu Queimado/RN, 28 de outubro de 2020

Ziani, é preciso confessar que essa cartita há dias deveria ter tomado forma, mas a preguiça desavergonhada, que ando montado, faz com que o ajuntamento de letras na cachola fique para depois e assim muitas das coisas que queria contar se perderam pelos dutos dos neurônios ou viraram noticiário de jornal velho, porém, hoje tomei tento e aqui estou, batucando no teclado para ver se dá um samba.

Pois é, escrever não é tão fácil como parece e tem dias que o branco da folha do “santo Word” é tão intenso que cria vácuo no juízo, lá se vão as ideias e a gente fica encangando grilo na tentativa abstrata de preencher um parágrafo.

Zi, você sabia que o mar de Enxu é um mar abençoado e uma coisa que me entristece é que os pescadores daqui navegam em mares de indecisões e com um mínimo de assistência governamental? Pois é, essa prainha paraíso, que segundo contam, sendo a quarta maior produtora de lagosta do Estado não merecia ter pescadores trabalhando em condições tão adversas e embarcações em estado incrivelmente rudimentares. Ora, é uma crítica sim, mas não tão forte como deveria ser.

Sobrinha, a natureza e os deuses dos oceanos capricharam quando decidiram incrementar os segredos que dão vida ao fundo do mar de frente a Enxu Queimado. Os cabeços e riscas são fartos de tudo, dos pequenos caícos até as gigantes baleias, que por aqui são tantas, que, como dizem os pescadores, chega abusar.

O ponto de pesca mais famoso é o Cabeço de André, localizado a pouco mais de uma hora de navegação e que faz a festa dos amantes da caça submarina, como também enche de alegria o rosto marcado de sal, sol e suor dos pescadores nativos, quando chegam com os cestos carregados de bicudas, galos do alto, garabebeus, ciobas, serigados, xaréus, dentões, arabaianas, serras, cavalas e mais uma danação de outras espécies.

Dos mergulhares amadores, nos dias atuais, os que mais aproveitam são os pernambucanos, que pelo menos uma vez por mês vêm fazer uma fezinha e voltam para casa com as caixas térmicas carregadas. Tempos atrás vinham grupos de Natal, mas parece que perderam o rumo e com certeza, nunca esquecerão Enxu.

Há três anos que rabisco projeto para organizar um campeonato de pesca oceânica a nível nacional, porque sei da potencialidade, da visibilidade e dos benefícios que um evento dessa natureza traria para essa vilazinha dotada de muito carinho e aconchego. Fiz algumas reuniões na Colônia de Pescadores, com o então presidente, Xará, e levamos o assunto ao plenário que aplaudiu. Porém, fui fisgado pela burocracia dos órgãos oficiais, que tratam do meio ambiente, e esmoreci diante do longo, duro e tempestuoso oceano que teria que navegar, mas a ideia está viva.

Dia desses um amigo, da Bahia, dos muitos que convido para virem conhecer as belezas desse pedacinho de paraíso ou mesmo bater papo na sombra da cabaninha que tomo de conta, ligou perguntando se poderia vir e trazer os filhos que queriam margulhar. – Claro que pode! Organizei com Manoel de Neném Correia, pescador e mergulhador como ninguém, e lá se foram para um dia de pesca no Cabeço de André.

Pois bem, os meninos ficaram maravilhados e deram pulos de alegria quando a balança do rancho de Pedrinho de Lucia acusou 210 quilos de peixes de primeira qualidade. Nem é preciso dizer que as fotos da “expedição” vararam o mundo através das ondas internéticas. Os meninos prometeram voltar, e vão voltar, trazendo a tiracolo os amigos que ficaram babando nas fotos e nos relatos da pescaria.

Roseani Lopes Mattos Santos Gomes, sobrinha querida, lancei a linha nesse emaranhado de barcos, linhas, redes e peixes, porque sei que você é amante silenciosa do mundo maravilhoso da pesca oceânica, como também para tentar abrir os horizontes de uma das mais encantadoras comunidades pesqueiras das terras dos potiguares e que tem potencial para navegar a todo pano sobre um turismo diferenciado, de nível elevado e ao largo da mesmice. Se assim vai ser um dia, posso até sonhar e acreditar, mas sei que os mandatários das terras de Pindorama sempre governaram com as costas viradas para o mar.

Antes de colocar o ponto final nessa missiva, digo que embarque Luciano e Isa, em seu possante, e venham passar um final de semana sob o frescor e maresia trazidos pelos alísios de cá.

Cheiro!

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 77

10 Outubro (4)

Enxu Queimado/RN, 14 de outubro de 2020

Paulinho, faz tempo que você promete aparecer por essa Enxu mais bela e desde lá que combino com uma cioba, para ela se manter rechonchuda, para no dia que você aparecer ela pular dentro da panela. Ela sempre me pergunta quando será o dia, porém, sem mais desculpas a dar, respondo: Se prepare que tá perto, tá perto.

Amigo, a última promessa, sua, foi diante do mar de Galinhos, praia localizada um pulo daqui e bonita que só vendo, mas dessa não precisa pagar penitência, pois, naqueles dias, estávamos caminhando avexados para entrar de cara e peito aberto nas garras do monstrinho chinês. Entramos bem bonitinho, consumimos dois terços de 2020 entre medos, mortes, incertezas, arengas, birras e nessa pisadinha vamos seguindo em frente contando catabilhos.

Mas lhe digo uma coisa, se resolver aprumar o volante pelas estradas que cortam as entranhas do Mato Grande potiguar, pode vir com fé, pois assim como chegou chegando, bastou o monstrinho chinês escutar o azucrinado das bocas de som do tirinete politiqueiro, para se embrenhar pelo meio do juremal e, num pinote só, escafedeu-se para ninguém dar mais por conta. Se ele volta não sei, mas se voltar, que volte mais manso, se bem que, a agrura da caatinga é danada para deixar caboco valente ainda mais apoquentado.

E por falar no intricado das estripulias da política, por aqui a coisa vai cozinhando em fogão de boca larga e com uma ruma de carvoeiro a alimentar a brasa. Os cozinheiros, um de “toque blanche” verde, outro de azul, ditam os ingredientes da receita e vez por vez passam a colherada da prova. Por enquanto o angu está na fase do currute, mas mesmo assim a clientela lambe o beiço, bate palma e limpa o gosto com uma “caixinha” escumando. Ei, vou deixar o moído eleitoreiro de lado, pois dessa maruagem não entendo mais nada além do aquilo que ouço falar.

Paulinho, você tem sentido por aí o calor de derreter juízo que anda assolando o meio do mundo? Na varandinha dessa cabaninha de praia que tomo de conta, até que os alísios refrescam, mas basta uns passos além do assombreado, para o Sol mandar descer a lenha quente em nosso lombo. Os reclames que chegam via ondas da feitiçaria internética, dão conta que a fornalha se espalhou Brasil adentro e ainda tem uns magos da “intrigância”, apostando até os jumentinhos, que o termômetro vai abrir o bico. Meu amigo, é tanto calor que se brincar as jangadas já vão chegar com o peixe cozido.

Dia desses li nos ditos de um doutor, formado no beabá das coisas do tempo, que por esse Rio Grande do Norte, não tão grande como contam e cantam, a onda de calor seria apenas uma marolinha de nada. Talvez ele tenha tirado essa leitura dos abundantes ventos que dão energia ao litoral nordestino e se for assim, ele está certo, mas mesmo esses, sopram com sopro abafado. Aliás, não duvido das palavras do doutor, pois ele é um homem rezado, mas bem que queria ver o riscado da prova dos nove, porque segundo disse uma amiga, aqui tem três sóis para cada pessoa.

Amigo, quem cresceu e se formou no pé do verdejante Morro do Tirol, sentindo as lufadas perfumadas das aragens frias e gostosas daquele recantinho enigmático de bairro que dá nome ao morro, vendo as floradas e floreios de uma exuberante mata chamada Atlântica, pode até não entender das teorias que regem o tempo, mas sabe que na natureza nem tudo se pinta com o pincel que se pinta a razão.

E por falar em energia dos ventos, andam dizendo que vão plantar umas torres eólicas no mar e que desse beiço de praia vamos poder contemplar o rodopio agigantado das pás dos totens. Se assim for feito vai ser bonito de se ver e tenho por pensamento que é uma ideia bem menos agressiva ao meio ambiente do que a implantação das torres sobre dunas e matas da caatinga, que por ser assim, não me convencem da pureza da energia oriunda do reino de Éolo. É muita destruição para pouco resultado.

Paulo Eduardo Cortez Trigueiro, tá vendo a ruma de assunto que temos para assuntar quando você chegar aqui e ainda teremos os moídos futebolísticos que você domina como ninguém. Falando nisso, a rapaziada daqui gosta de futebol e tem uns craques que mereciam vestir a camisa de qualquer grande time brasileiro, porém, os olheiros dos deuses do futebol as vezes passam batido.

Pois é, meu caro e bom amigo, posso marcar a data com aquela cioba? Mas só peço que não marque em novembro, pois tenho um encontro com uma linda sementinha, preste a desabrochar, que quando abrir os olhos, vai encher os meus de lágrimas ao me chamar de vovô!

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 76

6 Junho (16)

Enxu Queimado/RN, 22 de setembro de 2020

Maroca, já desbotou no tempo aqueles dias em que você caminhou pelas areias brancas e macias desse pedacinho de paraíso, na companhia de Hélio, Órion e Neca. Foram dias de alegria e que fechamos com direito a assistir ao espetáculo de Érica, a mulher que vira cachorro, nas desnudas e humildes instalações de um circo mambembe. Pois é, mas ainda tenho na lembrança o sabor das pipocas, degustadas diante do picadeiro, e das cervejas estupidamente geladas, após o espetáculo, na varanda da mercearia de Dona Tita. Eita que foi bom demais!

Amiga, bem que vocês poderiam novamente aprumar a proa no rumo daqui, pois teríamos muitas loas e boas para dar risadas até umas horas. Taí uma ideia boa! E para animar o Hélio, diga para trazer a bicicleta, porque nos aceiros desse paraíso praia tem umas trilhas arretadas para um pedal legal.

Mara, tenho andado meio apartado do mundo colorido e delirante da vela de oceano, mas não deixo de curiar, aqui, ali, acolá, para não perder a linha de visada. Sob a sombra dessa cabaninha de praia, tenho mostrado mais interesse na lida das jangadas, botes, paquetes e nos cestos que desembarcam carregados com a maravilhosa produção pesqueira, que é coisa de encher os olhos.

Enxu é uma praia de pescado franco, mas este ano a produção tem andado combalida devido a força dos ventos que deixam o mar com cara de poucos amigos. As pequenas canoas até que se aventuram, mas não passam da linha de mar que permita um pulo de voltar a praia e em vez das bicudas, galos do alto, ciobas, arabaianas, cavalas, beijupirás, que são peixes tenros e de mar alto, os cestos chegam com serrinhas, guaiubas, ariacós, garachumbas, guarajubas, caicos e ubaranas, igualmente deliciosos, mas de receitas distintas e de vendagem no varejinho. Pois é, a natureza tem seus segredos!

Mara, e por falar em receitas, não sei pela forma ou pelo jeito de viver, mas tenho me aventurado cada vez mais pelas veredas dos trigais e quando dou por conta, lá estou com a mão na massa. Dia desses bateu saudade de um pão francês crocante e, sem perder tempo, me apossei da bancada da cozinha, juntei em 500g de farinha de trigo, uma grama de fermento de pão, 8g de sal, 5g de açúcar, 15ml de azeite de oliva, coloquei tudo numa vasilha e fiz dos braços hastes de mexedeira.

Quando tudo estava bem misturado, medi numa caneca com 280ml de água gelada e fui acrescentando aos poucos na mistura e, sem perder o fio do ponto, fui sovando, acrescentando água, sovando e acrescentando mais água, até que após uns dez minutos toda água havia sido absorvida criando uma massa homogênea. Fiz uma bolota, coloquei em uma vasilha, cobri com pano e pus para descansar, por duas horas ou mais, e fui aguar as plantas do terreiro. Amiga, tem que aguar mesmo e por isso os mamoneiros estão botando os mamões mais doce do que os doces mais doces. Pense!

Pois bem, duas horas ou mais depois, levantei o pano que cobria a vasilha, vi que estava na hora de trabalhar, coloquei a massa sobre a mesa, amassei em forma de quadrado, com a espessura de um centímetro e dividi em quatro partes, boleei e reservei. Ei, já que falei nos mamões é preciso falar nos jerimuns, aliás, vou falar não, vou deixar você vir aqui para comprovar. Mas que os bichos são bons, isso são! Sim o pão!

Sem dar espaço de tempo peguei uma bola de massa, polvilhei e estirei até formar um retângulo. Em seguida, enrolei até que ficasse no tamanho de uns trinta centímetros de comprimento e coloquei em uma forma polvilhada com farinha. Usei duas formas, com dois pães em cada. Deixei descansar, cobertos e em local sem ventilação, por uns 30 minutos. Acendi o forno e quando a temperatura atingiu 220 graus, pincelei os pães com água, fiz uns cortes em cima, polvilhei com farinha de trigo, joguei um pouco de água dentro do forno – para criar vapor -, e coloquei os pães para assar até que dourassem e apresentassem crosta crocante.

Arrumei um pote de manteiga sobre a mesa, para não perder tempo, e assim que tirei os pães do forno, ainda queimando as mãos, passei a faca, pincelei a manteiga, que derreteu pelas beiras, e passei nos queixos. Menina, ficou bom não, ficou a mulesta!

Está vendo, Mara Blumer, grande navegadora, capitã dos sete mares e comandante em chefe da Nau Maracatu e do fiel marinheiro Catu, como a vida de um praieiro, descontando os chamados de uma rede estirada na varanda, passa longe dos encantos do ócio. Sempre tem uma coisinha a mais para cuidar, se bem que o mar é logo ali e é diante desse ali que a nossa mente vagueia.

– E o pão? – Pois é, a receita está posta, vá testando por aí, pois no dia que você voltar aqui, vou querer provar, molhando os pedacinhos no caldo de um escaldaréu.

Um cheiro, aproveite as cores, os aromas e a magia da Primavera, que é a estação que a Natureza se faz enamorar, e Lucia manda um beijo para “Boi de Manga”.

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 75

3 Março (6)

Enxu Queimado/RN, 02 de setembro de 2020

Olá, doutora, como vão as coisas nas belas paragens que emolduram o trepidante alto de Ponta Negra? Por aqui tudo vai caminhando no rastro da desfaçatez de todos os decretos que escrevinharam normas e recados Brasil afora, e assim, lá vamos nós, cambaleantes para cruzarmos o portal do sétimo mês pandêmico, sem nem sabermos que danado de bicho é esse que resolveu baixar no terreiro e balançar o coreto do planetinha azul.

Mas segundo anunciam os sabidos, estamos a caminho do fim. Só que eles não dizem que danado de fim é esse. Aliás, em meio ao festival de receituários, prontuários, boataria e boletins de ocorrências policiais, estou lutando para entender se são os fins o justificam os meios ou se são os meios que justificam os fins. Seguindo na pisadinha covidiana, dia desses achei foi graça quando um valoroso professor, daquela turminha que bate tambor e se dana a esquadrinhar equações escalafobéticas no conforto de um forte apache consorciado, ficando nas terras dos Orixás, disse que depois que o povo descobriu que pode se curar em casa, tomando chazinhos, e que menos de dois por cento pode vir a ter complicações mais sérias, ficou difícil o discurso do fique em casa. Fico me perguntando por qual motivo eles não falaram nesses chazinhos antes.

Ao olhar a vida que passa diante da varanda dessa cabaninha de praia, que tomo de conta, me apego a observar em como a pandemia fez mudar o cotidiano dessa vilazinha praieira, que apesar de aparente tranquilidade, tem andado meio assustada. Os boletins pandêmicos, por aqui divulgados, batem cabeça entre teorias, protocolos e razões e o que se vê é um povo sem dar muito crédito a realidade que a ciência insiste em divulgar. Aliás, desde que o povo tomou gosto pelas mídias sociais, o conceito de realidade passou a ser incrivelmente abstrato e ainda tem gente querendo se meter a criar regulamento em um troço que não se permite regular, a não ser pela ação da chibata da censura, mas aí a história é outra.

Pois é, amiga, vamos assim, contando contos de um conto mal contado e deixando que a natureza se encarregue de dar um rumo mais saudável para o futuro incerto que se alinha no horizonte. E por falar em futuro, vem aí mais uma eleição municipal para botar animação nos recônditos desse país tropical e nessa Enxu mais bela a coisa está começando a pegar fogo, com dois candidatos, o verde e o azul, que apesar de não terem divulgado suas cartas de intenções, já caminham pelas ruas com sorrisos de orelha a orelha e em acenos afetuosos.

Marta, queria muito ver essa praia paraíso tomar destinos mais altaneiros, embasados em propostas sedimentadas em bases sólidas e que trouxessem boas novas a esse povo de bom coração, porém, tenho andado meio descrente com o eco que escapa dos burburinhos das esquinas. Burburinhos tão intensos que me vejo navegando no eterno devaneio filosófico entre a crença e a razão. Mas a crença, mesmo sem razão, dá o que pensar e é justamente nesse pensar que emerge a razão da minha descrença.

Pois é, amiga, está vendo como mudaram as coisas pelos encantos dessa beira de mar desde aquele dia em que você se despediu para embarcar, com Fernando, na realização do sonho a bordo de um veleiro pelos mares do Tio Sam? Aqueles coloridos dias de Verão foram bem reflexivos e até conversamos sobre os zunidos que vinham da China, mas assim como todos, naquele início de 2020, apenas discutíamos uma lógica, debruçados em uma crença e sendo assim, não conseguíamos chegar as portas da razão, como até hoje não conseguimos.

Cara amiga, Marta Franco Machado, não sei se essa cartinha com arremedos filosóficos foi devido a força da Lua cheia ou se efeito das inúmeras garrafas de vinho tomado durante a quarentena, mas as palavras chegaram assim e o que queria mesmo era convidar, você e Fernando, para passarem uns dias por esse paraíso, antes de retornarem para os embalos e encantos sobre o reino de Netuno.

Nossa varandinha continua aconchegante, o coqueiral continua lindo e as águas “enxuônicas” estão cada dia mais convidativas a um gostoso banho de mar.

Lembre-se que estamos em plena temporada da pesca da lagosta e para variar, as redes estão chegando carregadas de serras e garachumbas. Pronto, já temos motivo para acender o fogo, ingredientes para uma panelada de escaldaréu e prometo deixar de lado as ideias amalucadas que encheram essa carta, mas sabendo eu que é difícil, pois o ar da praia é cheio de volteio.

Cheiro, amiga, e não demore a vir!

Nelson Mattos Filho

Pizza – Uma fatia da história

Pizza marguerita (3)

A história da pizza é escrita em enfarinhadas tinas do mais fino trigo, banhada em boas colheradas de molho de tomate e recheada com sabores que variam ao gosto do freguês, mas alguns historiadores contam que as primeiras fatias foram degustadas por entre antigas civilizações egípcias e turcas, porém, línguas difamadoras colocam lenha de jurema preta no forno de barro e dizem que os egípcios e os turcos entendiam mesmo de pão e que pizza é coisa dos povos itálicos. E agora aqui estou eu, todo pretencioso, querendo acrescentar aspas, virgulas e pontos nessa mistura.

Pois bem, o segredo, se é que existiu, da primeira fatia já vai longe no tempo e deve ser por isso que existe a teima da fonte original da receita, e cá pra nós, seja de onde for, a verdade é que a pizza conquistou o mundo, dificilmente encontraremos uma alma boa para dizer que não gosta, foi nos fornos italianos que ela ganhou fama e a pizza marguerita, a mais afamada, divide com a mussarela e a calabresa, a mesa das três mais consumidas no mundo. Claro que existem divergências de opiniões, mas se a peleja terminar em pizza, tudo bem.

Sobre os discos de massa pululam saborosas curiosidades, como a que diz que antes de chegar a região de Nápoles, reconhecida como berço das “verdadeiras pizzas”, a iguaria não tinha o formato redondo, assumindo essa identidade para facilitar ser consumida dobrada ao meio.

Contam também que a pizza era consumida principalmente por trabalhadores da região Sul da Itália, que acrescentavam ervas e azeites e assim saciavam a fome com um alimento de baixo custo. O molho de tomate foi acrescentado tempos depois com acréscimo de toucinhos, peixes e queijos. Porém, a curiosidade mais marcante é sobre a origem da marguerita.

Os registros contam que por volta de 1889 o rei italiano Umberto I e a rainha Margherita de Savóia, saíram em uma viagem de navio e ao atracar em um porto do reino, desejaram tirar provar da culinária do lugar, que diziam ser famosa. No corre, corre, os assessores do rei convocaram o pizzaiolo Raffaele Esposito, e esse, no afã de incrementar uma receita para encantar a majestade, recheou uma pizza com molho de tomate da melhor cepa, queijo e manjericão, ingredientes que, pelas cores, lembravam a bandeira italiana.

Para fechar a apresentação com chave de ouro, deu o nome de Pizza Margherita, em homenagem a rainha. – Se o rei gostou? – Isso eu não sei, mas a rainha deve ter ficado feliz da vida! Dou por visto o moído nas tabernas napolitanas, com todo mundo querendo saborear, nem que fosse uma lasquinha, a Margherita!

Bem, gosto do sabor exótico da pizza marguerita, Lucia ama, porém, reservo para ela a cadeira número três da mesa, mas não tenho dúvidas em apontar a cadeira da cabeceira para a pizza calabresa, até porque é a que mais gosto e a criançada adora. Já a pizza mussarela, puxo a cadeira da direita e assim vou seguindo no decorrer do cardápio, até me deliciar com todas.

– Ah, tá bom, quer saber sobre a origem da pizza calabresa, não é? Diz a lenda que foi invenção dos americanos do Tio Sam, mas não aposto muitas fichas nesse menu, até porque a linguiça calabresa é uma invenção ítalo-brasiliani, produzida por italianos lá no bairro paulista do Bixiga, e é por aí que vou caminhando.

– E a mussarela? – Essa é fácil! Os itálicos pegavam o disco de massa e colocavam azeite e ervas, então, certo dia, alguém falou: “Estou enjoado desse troço, vamos botar um queijinho para variar? ” Alguém falou: “Bora, acho que tenho um pouquinho em casa. Peraí que já volto! ”. Está vendo como foi fácil a explicação!

Pois bem, antes de servir a última fatia, vou dizer que a melhor pizza mundo pode até ser servida na região de Nápoles, mas a melhor pizza do universo é servida na praia de Enxu Queimado/RN, na varandinha da AVOANTE Pizzas e Saltenhas, pois quem assim sentenciou foi uma criança e, como se sabe, criança não mente. Mas se você não acredita, venha provar e comprovar.

– Tá bom, quer saber do retrato, né? – A foto que ilustra esse fatiado de texto é de uma Pizza Marguerita, com massa integral. Claro que o Esposito, como bom pizzaiolo italiano, jamais imaginou produzir a pizza da rainha com farinha integral, e nem eu, mas os tempos mudam e na pizzaria AVOANTE, a gente quer ver todo mundo feliz.

– Se é jabá? – É não, é pizza!

Nelson Mattos Filho

Cartas de Enxu 74

11 Novembro (137)

Enxu Queimado/RN, 30 de julho de 2020

Meu caro e bom, Dr. Ronaldo, já vai alto aquele dia em que sentamos sob o frescor assombreado da varada dessa cabaninha de praia, que tomo de conta, e emendamos os bigodes num bate papo sem freio, regado a fartas taças de vinho, algumas doses da mais legítima cachaça paraibana, temperado pelo aroma do malte do whisky de José Augusto Othon, e, para fechar o firo, saboreamos uma das deliciosas moquecas de Lucia. Meu amigo, aquele dia foi demais da conta, e para não esquecer de registrar, ainda ecoa por entre as palhas do coqueiral, a bela trilha sonora do DJ Othon. Show!

Pois, doutor, é muito gostoso receber pessoas de alma leve, coração maior do que o mundo e que trazem na bagagem, além do abraço sincero, muito carinho. Ainda guardo na memória, e sempre digo a todos que aqui chegam, as palavras de José Augusto, quando Sônia o chamou para irem até a beira mar conhecer um pouco mais dessa Enxu mais bela e conferir as paisagens que sempre retrato: “Sônia, vá e me diga se lá está mais gostoso do que essa varanda. Se tiver eu vou, se não tiver nem precisa dizer”. Demos uma boa gargalhada e Sônia nem titubeou, ficou onde estava.

Sabe o que também não esqueço, dos alertas de Lucia quando achava que eu estava falando pelos cotovelos: “Amor, deixe o povo falar também!”. E eu cá comigo: “Deixo não, porque quando vou ao consultório de Ronaldo, ele também fala que só a bixiga”.

Eh, nas poucas horas de meados daquela Primavera, botamos um bocado de assunto em dia e desenterramos outros tantos há muito esquecidos e, para variar, falamos das coisas do mar e das minhas andanças a bordo do Avoante, que sempre atiçou sua curiosidade. Mas confesso que sinto falta de escrever os relatos da vida tive sobre o mar, dos bons e maus momentos, dos amigos que ficaram com o aceno estendido nas pedras do porto, dos leitores que até hoje cobram entristecidos e do envolvimento do abraço constante da natureza, porém, os ventos mudam.

Hoje estou aqui, numa cabaninha de frente para um magnifico coqueiral, pastorando os alísios, sentindo o cheiro de maresia entrar pelas brechas das telhas, lacrimejando os olhos ao avistar o bailar das velas brancas adentrando o mar e sempre que a preguiça permite, desenferrujando o corpo em saudáveis mergulhos nas águas Atlânticas. No dia a dia a bordo do Avoante, a água estava a um palmo da mão, hoje ela está a alguns passos, amanhã não sei, porque aprendi a seguir os ditames que esvoaçam pelas muralhas do castelo do deus do vento e a primeira regra diz assim: Os ventos são infinitamente mais sinceros do que a razão.

Pois é, caro amigo, prestando atenção nos rodopios dos alísios pelo céu de Enxu, sinto a ligeireza das mudanças no cotidiano dessa vilazinha de pescadores. Dia desses foi a implantação da floresta de torres de cata-ventos, criando ânimo novo, afastando a juventude dos segredos e mistérios do mar e inserindo o povoado no seleto círculo da alta tecnologia energética.

Hoje, em meio ao grave movimento pandêmico, o povoado volta a se assanhar com mais uma promessa da construção de uma estrada pavimentada que ligará Enxu a sede do município. Se a estrada vai sair eu não sei, mas a promessa corre faceira por sobre as dunas. Porém, no rastro do projeto surgiu um fantasma, medonho que só vendo, ameaçando o sossego do povoado.

Doutor, me diga se você leu o romance Tocaia Grande, do amado baiano Amado? Aquele romanceio é instigante, divagador e move em nossa alma um senso de maledicente injustiça. Pois num é que agora surgiu um desarvorado, vindo lá das bandas de além-mar, abanando uma papelada e se dizendo dono do lugar, porque pagou dinheirama boa em tudo que aqui está posto.

– Tudo o que cara-pálida? – Vosmecê, com esse palavreado esquisito, comprou uma cidade que existe há mais de 100 anos, foi? – E por mal lhe pergunte: Com a graça de quem? – Seu rapaz, e você vai pagar pelos investimentos públicos existentes na terra que diz que é sua? – E o que dizem os gestores públicos, de ontem e de hoje? – Seu menino, quando tu chegasses com os cajus o povo já estava comendo as castanhas!

Pronto, Ronaldo Dumaresq de Oliveira, meu oftalmologista favorito, está estirado sobre a mesa da varanda mais um catatau de peleja para a gente tirar prova de vista na sua próxima visita a essa terrinha boa de frente para os quadrantes do Norte. Diga a Dona Célia que arrume o bisaco com um amontoado de roupas que dê para um período longo, pois o moído promete tempo.

Grande abraço e já vou apressar a encomenda do peixe.

Nelson Mattos Filho