Cartas de Enxu 01


Agosto (11)

Antes de começar a escrevinhar a primeira das Cartas vou dizer que não será preciso você se benzer três vezes e nem se arvorar de um crucifixo para ler, pois o enxu aqui não se refere ao Orixá Exú e sim, a praia de Enxu Queimado, um pedacinho delicioso do litoral norte do Rio Grande do Norte, onde a vida ainda insiste em caminhar sobre um cotidiano bucólico, apesar da presença ameaçadora de gigantescos totens eólicos, que mais parecem mamulengos transformadores de belíssimas paisagens em cenários devastados de filmes futuristas, em que personagens disputam o reinado da brutalidade.

Após onze anos e cinco meses morando a bordo do Avoante, um veleirinho arretado de bom, e escrevendo o cotidiano da vida sobre o mar nos textos Vida Bordo, que ultrapassou o número quinhentos – cinquenta deles publicados no livro Diário do Avoante, lançado em 2013, – decidimos passar uma temporada em terra firme e escolhemos a praia potiguar para seguir no novo rumo. Essa mudança se deu em junho de 2016, porém, não havia criado coragem para escrever sobre ela, porque não tem sido fácil digerir essa mudança e nesse primeiro momento, tenho andando meio assustado com o que tenho presenciado nas ruas das cidades. Na verdade, os primeiros dois meses foram de tratamento de choque, pois viramos prisioneiros forçados numa Natal sem dono, sem Lei, sem alma, sem essência e sem esperança.

– Oh Natal, cidade cascudiana de Poti, povoado que acolheu com fervor o codinome dos Reis Magos – comunicadores das boas novas. Pedaço de terra defendido com arcos, flechas e tacapes pela nação Tupi. Noiva do Sol. Cidade trampolim da vitória de uma guerra absurda e desumana. Vilarejo entre o rio e o mar e abençoado por Nossa Senhora da Apresentação. O que fizeram como você Natal? Quem a descaminhou pelas brisas errantes? Logo você Natal, que tanto se orgulhou dos alísios que a acariciam. Hoje você é uma cidade retraída, cabisbaixa, esmaecida, amedrontada, desiludida e desapartada do seu maravilhoso sorriso largo. Seus abraços já não são os mesmos, pois existe um que de desconfiança entre você e o abraçado. Suas ruas já não nos acolhem com alegria. Em qual das suas esquinas ficou para trás a musa e poética linda baby? Oh Natal, você não merecia tanta desfeita e tanto abandono!

Pois bem, Cartas de Enxu não é para desabonar cidades e muito menos relatar as tristezas da vida, mas sim, deixar algo escrito, mesmo que em linhas desalinhavadas, da riqueza de costumes e valores de um pequeno povoado, e suas vizinhanças, encravado entre o mar e o sertão. Um lugar de gente alegre, extremamente acolhedora e que, mesmo diante das adversidades, consegue olhar para o mundo com um olhar de inocência. Uma prainha que há mais de 25 anos flechou meu coração e passei a amar. É nessa prainha praieira que me instalei depois de desembarcar de uma vida de sonhos e será da varandinha da minha choupaninha, cercada de coqueiros, que olharei para o mundo e talvez passe batido em temas que desassossega o país e o resto do planeta, pois as coisas por aqui ainda caminham lenta e com os pés na areia. O cotidiano por aqui ainda segue os princípios do mar, apesar dos ventos terem trazidos boas novas nas pás de um progresso meio atrapalhado. É na poeira avermelhada das ruas e becos de Enxu, que buscarei a vitamina para azeitar meus escritos e quem sabe, deixar material para quem um dia quiser pesquisar o passado olhado da varandinha de uma casinha de praia.

A Terra é um vulcão em permanente estado de erupção e nada melhor do que a gostosura de uma rede armada, diante do frescor de uma sombra macia, para servir de camarote de observação. É com o passar dos dias bucólicos nessa prainha ainda nativa, que conserva as origens de sua colônia de pescadores, que olharei as lavas fumegantes do vulcão. Será através de uma lente desnuda dos malabarismos das modernosas ferramentas de edição que me transportarei pelos caminhos dos escrevinhadores. Posso até cometer os costumeiros erros crassos, que sempre cometi nas crônicas Vida a Bordo, mas seguirei.

Aliás, sobre a palavra crasso, que passou a estar presente em minha mente, não tenho muito o que falar, a não ser relembrar: – Certo dia um leitor, ao encontrar-se comigo em um evento, puxou-me pelo braço e disse como se segredasse um pecado: – Gosto de sua escrita e é a primeira coisa que leio ao abrir a Tribuna do Norte, aos domingos. Gosto muito, mas você é muito crasso! Sorri, agradeci, apertei sua mão e sai matutando. – O que danado é isso? Socorri-me aos universitários que estavam na mesa e ao chegar em casa tratei de conferir no pai dos burros. E lá estava: “Crasso: Grosso, denso, espesso, rude. Falha, erro grave”.

Pois é, escrever não é fácil.

Nelson Mattos Filho

8 Respostas para “Cartas de Enxu 01

  1. Margarete Alves

    Gosto muito dos seus escritos,a primeira coisa que lia na Tribuna era a sua coluna,mas virei sua fã de carteirinha,quando descobrir sua paixão por Enxu Queimado,terra boa,onde passei minha infância! Lhe desejo tudo bom,paz ,saúde alegrias sucesso e vida longa para continuar contando e retratando o belo da vida!

    Curtir

  2. Você acredita se eu disser que já havia imaginado que seriam Cartas de Enxu Queimado, você acredita? Não! Eu sabia, mas conhecendo seu estilo prosaíco e jovial, já imaginava. Oba! De volta as “viagens” pelas brumas praianas. Abraço

    Curtir

  3. Carlos Alcyr Dantas

    Nelsinho, quando for para o lado do RN quero conhecer Enxu Queimado, ainda não conheço.
    Abraço
    Carlos Alcyr

    Curtir

  4. Rapaz, que notícia bomba!
    Não sei quais as motivações desta tomada de decisão, mas tenho certeza de que é coisa séria, bem pensada e pesada nos seus pormenores.
    Sempre, nos últimos tempos, me norteei por um futuro embarcado e vocês sempre foram minha bússola maior, mais efetiva, mais ponderada.
    Que coisa , heim?
    Eu, que tanto fui convidado a embarcar, tirei férias e te liguei mesmo no apagar das luzes não, no apagar da luz!
    Não posso deixar de dizer que fiquei um pouco triste com esta novidade, mas sei que, como já disse antes, tenho certeza de que foi uma decisão das mais ponderadas.
    Me resta então dizer o óbvio, que vocês sejam tão ou mais felizes do que no tempo que passaram embarcados, que as bênçãos de todos os mares agora se espraiem todos os dias à sua porta e que os ventos batam na sua janela com aquele carinho perpétuo, de um gigante que não cansa nem deixa ninguém sem notícias de outras paragens.
    Pois é, nelson, agora você vai viver a vida que eu tive nos últimos 5 anos e que, neste 2016, tive de deixar para trás por conta da escola do Leo (hoje ele está completando 7 aninhos, nasceu em 09 do 09 do 09) e não deixamos de estar muito felizes por sabermos estar fazendo a coisa certa.
    Por uma certa coincidência, ele pediu para que não fosse à escola hoje, pois queria passar seu dia tão especial em Itamaracá. Então que estamos agora, neste momento, de saída para lá.
    Tomarei sim, umas cervejas hoje, e olharei por um tempo para a linha do horizonte pensando em vocês, nas suas aventuras dos últimos 10 anos e obviamente em mim, me fazendo a mesma boa e cada dia mais velha pergunta, desta vez com um pouco mais de intensidade, de lamento e de esperança: E agora Hélio Mattos? Quando é que vai ser?

    Curtir

    • diariodoavoante

      Meu caro Hélio, obrigado pelas palavras e veja a postagem, Avoante Avoou, título retirado de sua bela canção, e assim pegará o fio da meada dessa decisão. Grande abraço e espero sua visita nessa Enxu mais encantadora, Nelson

      Curtir

Deixe um comentário