A Tempestade – Parte 19


6 Junho  (240)

– E a Tempestade que nunca acaba? Pois é amigos, há nove meses publiquei aqui a 18ª parte de A tempestade, escrita pelo velejador Michael Gruchalski, e de lá para cá venho recendo cobranças dos leitores que embarcaram no relato e estão ao deus dará em meio a um mar tempestuoso em frente a bela cidade de Aracaju/SE sem saber que rumo tomar. Depois de nove meses, eu já havia perdido as esperanças, o cronista resolveu pingar mais uma dose para aplacar a nossa angústia. Agora vamos rogar aos céus para que o autor consiga achar o caminho do Porto e atracar o veleiro em segurança. Achar o fio da meada dessa peleja é fácil: Basta ir em PESQUISAR NO BLOG e inserir o título A Tempestade. Está tudinho lá.  

A TEMPESTADE

PARTE 19. A BARRA DE ARACAJU II

Por: Michael Gruchalski

Não sei quanto tempo havia passado quando abri um olho, depois o outro. A cabine balançava ritmicamente, ouvi o motor trabalhando. Com certeza, estava num veleiro. Levei mais quatro segundos para entender como, onde e por que.

Não me mexi. De olhos estatelados, consciente da situação, pensei no motor. Nosso coração de ferro. Lembrei-me de um ensinamento de um velejador experiente que não perdia a oportunidade de dizer: “perca o mastro e as velas, perca a comida, os eletrônicos e as bombas, perca tudo, mas não perca o motor, eixo e hélice. O motor é a diferença entre chegar e chegar bem”.

Você nunca vai deixar de chegar a algum lugar enquanto estiver em cima de um casco bem feito porque o mar não o quer flutuando sobre ele a vida inteira. Sem motor, você terá muitos problemas para resolver, mas estará seguro do seu destino. Seu destino, não importa aonde, será algum ponto em terra firme, algum dia. Até lá, o maior problema vai ser o tempo, só isso. O tempo de atraso. Serão alguns dias se você tiver sorte, semanas ou meses, se tiver azar.

Velas, mastreação e ferragens, convés, interior, hidráulica e elétrica compõem a parte lúdica, prazerosa de um veleiro. Proporcionam a poesia, o conforto e o encanto de deslizar sobre as águas do mundo, auxiliados nessa tarefa por belos por de sóis, luas, estrelas e ventos. Sanitários elétricos e churrasqueiras também que contribuem.

Mas, o que acontece quando o coração, o motor de um veleiro, falha? O que acontece quando a alma, a propulsão, o motor de um veleiro em alto mar, desiste, morre? O que acontece com o passeio, o projeto, o planejamento, os sonhos, os horários? Resposta: vira tudo pó! Você está com a geladeira abastecida, as camas estão secas, você tem água doce e diesel a vontade,mas, está cheio de dúvidas, apreensivo, cercado apenas pelo mar até onde o horizonte alcança. Do motor dependem as baterias, das baterias, os instrumentos e luzes, dos instrumentos, o rádio. Conclusão: a depender da distancia da costa, segundo meu amigo, sem ele, o motor, lá em baixo, funcionando, você está perto de morto.

È quase assim: o motor está para um veleiro assim como as turbinas estão para um avião. Como dizia, e ainda diz o meu amigo: perca tudo, mas não perca o motor…

Olhei em volta. Estava na cabine de proa, o único espaço seco do barco. A cabine do salão estava um pandemônio. Sem as tábuas dos paióis, com os colchões molhados, mal dobrados e mal enfiados nos buracos. Na água do piso, com altura de três dedos, balançavam duas latas de coca cola amassadas, duas almofadas de encosto, talheres, maçãs e laranjas, capas de catraca soltas, uma lanterna,além da metade do conteúdo do lixinho da sala que caíra abrindo a tampa- plásticos, cascas de bananas e caroços de mamão. Tudo rolando pra lá e pra cá ao sabor do balanço do veleiro. A luz do sol penetrava , já de cor bem amarelada, na cabine, projetando sombras em movimento pelo interior. Triste aspecto.

Botei os óculos. Virei-me e encostei no carpete que cobria a fibra para sentir a gravidade da quebra da prateleira de madeira durante a tempestade. A tábua de cedro marítimo com três quartos de polegada de espessura havia sido despedaçada em dois pedaços com a força descomunal da pressão de água de uma onda sobre a fibra. A metade de ré, ligada à outra metade por apenas alguns fiapos que teimavam em não ceder, balançava ao sabor da batida das ondas lá fora durante a navegação. Arrepiei. Nosso destino estaria selado naquela noite da tempestade se aquela madeira não tivesse segurado a fibra. Mesmo agora, com mar calmo, já que não encontrava a resistência, ela vibrava sem parar fazendo um percurso de uns dois centímetros para dentro e para fora,

Lembrei que minha esposa sempre reclamou quando, à noite, precisava virar de lado e batia o joelho naquela prateleira. Em breve, ela saberia o motivo daquela providencia do projetista. Eu iria explicar e ela nunca mais reclamaria. No nosso barco, como no veleiro do comandante, as prateleiras da cabine de proa eram idênticas.

Alguém havia recolocado no prego o relógio de plástico azul que caíra durante a tempestade. Os ponteiros indicavam quatro horas. Meu Deus, havia dormido fundo durante três horas seguidas sem ser chamado pelos meus companheiros. Olhei para a gaiuta do salão. Da minha posição, vi quatro pernas, duas de cada lado, lá fora, no cockpit.

Aracaju já devia estar perto!

“Tudo bem aí?” gritei. A resposta veio com a cara do comandante sorrindo pela abertura da porta do salão: “Você dorme, hem!!” Virei o corpo para pôr os pés no assoalho do sanitário sem pisar em algum objeto que havia caído do armário. O piso do sanitário também estava cheio de água. Havia mais água que do que salão. Numa área três vezes menor boiavam na água desde um tudo de pasta de dente, escovas de cabelo e material de pesca solto – linhas, rapalas, lulas artificias, encastoados, todo conteúdo da caixa de pesca que espatifara-se no piso com a abertura da porta do armário. Lá estava também a toalha que servira para tapar a ventoinha do teto durante a tempestade e até a bomba de encher o bote inflável com mangueira e tudo. Muito cuidado com os anzóis! Pulei. Ultrapassado esse obstáculo com um salto, veio o segundo, no salão, onde havia menos água e menos objetos perigosos soltos no piso.

Estiquei o pescoço para fora. Senti na planta dos pés a temperatura alterada da madeira da escada devido ao longo funcionamento do motor. Ele roncava baixinho, comportado, como bom menino. Como um bom menino também, vi o filho do capitão, de pé, no espelho de popa, a mão esquerda no estai de popa, o pé direito sobre a cana de leme, pressionando-a para baixo e a adriça esticada a partir do cinto peitoral até o top do mastro pela popa. Estava tudo bem amarrado, o mar calmo ajudava no manejo do leme de fortuna. Só nossa velocidade não havia alterado. Continuava baixa, dois a três nós por hora. Mais potencia no hélice e o leme derraparia de lado obrigando o barco a fazer um circulo completo e inútil.

Olhei para o lado. Ali, a cerca de seis milhas, a nossa direita, banhada pelo sol, estava a praia de Atalaia. Aprovávamos para o sul. Pela bochecha, mais a ré do que pelo través, reconheci um pequeno ponto preto com sendo o farol de Atalaia. Do outro lado, contei, rapidamente, seis, sete plataformas da Petrobras, umas, bem longe no horizonte outras, pela proa, bem mais perto e grandes, a menos de três milhas. O sol, já bem baixo, inundava o poente de luz amarelo ouro, quase impedindo o reconhecimento das silhuetas difusas dos prédios mais altos do centro da cidade. O vento soprava do sudeste, de proa, mas não ultrapassava sete nós. Apesar do horário para aquela hora. Um presente dos Deuses para quem queria adentrar a barra do rio Aracaju? Será?

Faltava uma hora e meia para o por do sol previsto para as dezessete e trinta. A visão da água e do trecho que nos separava de terra firme, as praias, era bastante prejudicada por causa do excesso de luz. Não dava para ver onde começava a linha natural da arrebentação descrita na carta náutica do lugar.

Três fatores definiriam o grau de perigo dessa zona de altos e baixos fundos para a nossa navegação, nossa aventura: a) a intensidade e a direção do vento que, felizmente para nós, naquela tarde, era uma brisa leve do quadrante sul, b) a posição ou altura da maré e o fato dela estar subindo ou descendo no momento do acesso e que, para nós felizmente também, naquela tarde, estava favorável, em final de enchente e, c) a correnteza ou a vazão do rio correndo no sentido do mar em função de estar cheio ou não com as chuvas havidas na região ou sua cabeceira. Não tínhamos essa informação, talvez fosse melhor não saber. Desconfiávamos que fosse um rio bem cheio e caudaloso com correntezas fortes, mas não tínhamos certeza.

Olhei para o capitão e não disse nada. Sabia que estava pensando nisso tudo. Na mesma coisa. O clima entre nós, por causa das coisas não ditas, era de agonia e dúvidas. O esgotamento, o estado do barco e as terríveis lembranças muito recentes da tempestade estrangulavam o sentimento geral de felicidade pelo conquista de termos conseguido chegar até ali. O fato de estarmos tão perto de terra só garantia as nossas vidas. Faltava a última etapa; salvar nosso bravo barco. Levá-lo até lá dentro do rio, bem longe da ressaca da foz, lançar ancora num lugar calmo, pouco profundo, sem correnteza.

Só isso. Não só. Agradecer e dormir o sono dos justos.

13 Respostas para “A Tempestade – Parte 19

  1. Ô tempestade que não acaba!
    Éssa é a que ta caindo em Salvador?

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  2. Peguei essa história pela metade, tenho q ler as outras partes pra entender melhor, mas belo conto.

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  3. Essa é da bixiga mesmo….kkkkk….mas agora que vou ter mais tempo, vou juntar todos os capítulos num PDF pra ler.

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  4. Pôxa, eu já tinha até desistido…
    Aconselho sim, a quem não leu os 18 capítulos anteriores, a fazê-lo sem perder um só que seja.
    Muito bom.
    Pena que toda e absoluta vez eu fico com gosto de quero mais.
    Ao final vou fazer como o Elson e ler tudo de uma vez, sem medo de ser feliz.

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  5. Tô é deitado numa rede!
    Porque até sentado eu já cansei…(Rss)

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  6. Pessoal, aqui é o Michael. Prometo que termina na próxima, todos vivinhos da silva… No mesmo dia, o Nelson vai colocar um pdf zipado pra baixar com todos os 20 capítulos. ok! Um obrigado sincero e emocionado pela recepção que esse texto teve nesse blog. Só mais uma coisa: pra quem ainda continua não acreditando, é uma história verídica ocorrida em setembro de 1997 indo para Recife participar da Refeno. Um grande abraço a todos !

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    • diariodoavoante

      Michael, ficamos agradecidos pelas explicações e pela promessa do arquivo. Aproveite esses dias chuvosos em Salvador para terminar com essa peleja. Abraços, Nelson

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  7. Carta para dois

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