As lições deixadas por Eric Tabarly


imageNesse mês de Julho de 2013 faz 15 anos da morte do velejador francês Eric Tabarly, que caiu do lendário veleiro Pen Duick durante uma manobra de velas. Para lembrar essa data que marcou o povo do mar, o velejador pernambucano Luiz Sergio Gusmão enviou ao blog uma tradução do artigo “Eric Tabarly´s last night alive” escrito por Dan Houston na revista eletrônica Classic Boats, de 9 de Fevereiro de 2013. No final da tradução Luiz Sergio lista dez conclusões que podem tornar mais seguras uma navegada.

 

“Pen Duick deixou Newlyn no final da manhã juntamente com o veleiro Magda IV. Foi acertado um contato por rádio VHF portátil a cada três horas. Prudentemente, o skipper do Magda IV partiu com o velame reduzido, já que ele molha muito em mar agitado. Eric, de acordo com a sua prática, colocou todos os panos disponíveis no Pen Duick: três velas de proa, sua grande de maior área vélica e a topsail. Ele estava com pressa para navegar o barco novamente. Pen Duick passou a extremidade de Land’s End cerca de 13h00ms. Na parte da tarde, o sul refrescou. Eric retirou uma buja e a topsail…”.

Esta foi a primeira vez que Erwan Quéméré navegou no Pen Duick. Ele ficou muito impressionado ao ver Eric, aos 66 anos, trabalhando no final do gurupés, equilibrando-se enquanto calmamente retirava a buja. Claro que não havia cintos de segurança ou linhas da vida; Eric nunca os usou. Certa vez, ele disse que preferia passar uma hora na água do que ser amarrado com um cinto.

No mar da Irlanda permanecia um forte swell, decorrente dos quatro dias anteriores de vento norte. Agora, o vento soprava do sul, criando um mar curto e agitado, que era muito desagradável para o Pen Duick, que é baixo na água, com pouca borda livre. Como o vento continuava a aumentar, Eric decidiu reduzir a área vélica. Ele colocou um rizo na grande e depois dois. Cerca de 23h45m, Pen Duick ainda estava pressionado, velejando com 2 rizos na vela principal e apenas uma pequena buja. A seguir o mar cresceu ainda mais, e embora as condições não fossem ainda de tempestade, o barco estava sendo golpeado repetidamente por rajadas e a noite era negra com a chuva grossa. A previsão era de ondas de dois a três metros, mas na realidade as ondas eram íngremes, medindo de 3 a 4 metros.

Eric decidiu substituir a grande pelo trysail de tempestade. É fácil imaginar o barco, subindo e descendo a nove nós, com o vento de popa rasa, nesse mar íngreme e desagradável, fazendo o barco rolar de bombordo a boreste, e é importante ter em conta essas condições para se entender o que aconteceu em seguida.

Quando você decide baixar a vela grande, você coloca a retranca, por meio do traveller, no eixo do barco. (Nota do tradutor: o Pen Duick usava um tipo de armação no qual a vela grande tem uma segunda retranca, menor, no topo da vela. Essa retranca se chama “gaff” em inglês e “corne” em francês). Então baixa tudo rapidamente e prende o “gaff” na retranca. É um momento delicado, especialmente se está ventando muito e o barco rola de um lado para o outro. A vela deve ser recolhida rapidamente para não cair na água e você precisa ser rápido para garantir que o “gaff” não fique zig-zagueando no ar acima das cabeças da tripulação.

Para esta manobra, Eric pede a Erwan Quemere para assumir o leme. O fotógrafo, um bom marinheiro, pergunta se ele deveria botar o barco no vento

“Não, não, vamos tentar fazê-lo assim mesmo”, disse Eric em resposta. Você não discute uma ordem com Tabarly. Antoine e Jacques-André estão no pé do mastro, com as duas adriças nas mãos para arriar a vela e o “gaff”. Antoine então move-se um pouco à ré do mastro para ajudar a abafar a vela. Eric está ainda mais para trás, de pé no convés, com o peito contra a retranca e luta furiosamente com o tecido. Ele já tinha feito isso milhares de vezes. O “gaff” vai sendo abaixado e a vela grande sendo recolhida. Faltam apenas alguns segundos … apenas mais um nó, para passar ao redor do “gaff” e … e ele seria imobilizado.

Mas ocorreu uma lufada mais violenta, e a oscilação do gaff aumentou violentamente para estibordo, e balançou para bombordo com força enorme. Eric é atingido em cheio no peito. Ele é projetado violentamente para trás e para no mar. Quando Erwan se lembra deste momento, ele acha que, mesmo com dois membros da tripulação naquele local, ambos teriam sido jogados ao mar da mesma maneira. Eric não tem um cinto de segurança. Ele grita alguma coisa. Ele certamente não está ferido. Ele não está vestindo um colete salva-vidas, nem leva equipamentos pessoais capazes de mostrar à tripulação no barco onde ele está na água.

A equipe joga imediatamente boias no mar e lança foguetes vermelhos tipo pára-quedas. Mas não há barcos perto de Pen Duick e eles decidem preservar o resto dos foguetes. Usam um VHF portátil e assim o pedido de socorro emitido não será ouvido pela guarda costeira. A sua última posição, por GPS, foi anotada às 21h30m. No momento do acidente, Pen Duick está a 80 milhas ao norte de Land’s End e 35 milhas ao largo da costa do País de Gales.

Após recolher as velas no convés a tripulação liga o motor Volvo de 18hp. Com sua pequena hélice de duas lâminas, a tripulação encontrou dificuldade em fazer o caminho de volta, contra o vento. O motor era apenas para manobras no porto; Eric gostava de fazer tudo à vela. Neste mar muito agitado e contra o vento, o motor não foi suficiente, desenvolvendo talvez metade de um nó, o que fez Pen Duick levar três horas para voltar para a posição em que Eric foi ao mar. Depois de várias horas de busca, eles voltaram para a costa, na esperança de encontrar outros barcos. O vento tinha caído, mas o mar continuava mexido.

Ao amanhecer, a tripulação viu Mike Slade com o seu maxi Longobarda fortemente rizado, em rota para a Irlanda. Eles enviaram um foguete vermelho e o Longobarda mudou de rumo em direção a eles. A bateria do VHF portátil arriou, de modo Longobarda teve que vir ao lado para ouvir a tripulação gritando o que tinha acontecido a bordo do Pen Duick. Longobarda alertou a Guarda Costeira em Milford Haven às 07h00m. Um helicóptero da RAF e o barco de resgate Angle foram encaminhados para o local e vários navios, incluindo um caça-minas da Marinha Real se juntou à busca. Quando a notícia chegou na França, um avião Bréguet Atlantic também chegou e patrulhou até o anoitecer.

O Longobarda ficou com Pen Duick até o navio de resgate chegar. Dois membros do barco de resgate vieram a bordo do Pen Duick e dois de seus tripulantes foram para o barco salva-vidas e eles seguiram a motor para Milford Haven. Quando Pen Duick ficou sem combustível, o barco salva-vidas passou um galão para eles. Os franceses ficaram impressionados com o profissionalismo dos seus salvadores que foram simpáticos com eles depois de saber da tragédia e de ouvir sobre os acontecimentos da noite.

Desde a meia-noite aquela tripulação estava em estado de choque. Erwan lembra que ele deixou Bénodet para viver um sonho à vela de sonho com Tabarly. Esse sonho se transformou em um inferno.

Conclusão e considerações de Luiz Sérgio Gusmão:

Tenho o maior respeito pelo grande Eric Tabarly. Nunca pensaria em criticar suas ações como marinheiro, muito menos como comandante de um veleiro. Considero que ele foi uma grande inspiração para todos velejadores e mesmo as circunstancias de sua morte serviram de alguma forma para nós. E é dessas circunstancias que tiro algumas lições.
A verdade é que Tabarly, como um verdadeiro semi-deus, se considerava indestrutível. E nunca deu muito valor à questão da segurança, particularmente, à sua segurança pessoal.
Nos relatos relacionados com aquela fatídica noite de 13 de Junho de 1998, podemos distinguir várias atitudes que vão do “não aconselhável” ao “francamente perigoso”. Vou tentar enumerar algumas:
1 – O barco partiu com todas as velas em cima e teve de retirar velas e receber rizos enquanto o vento aumentava, o que estava previsto como possível. Isso é o contrário do aconselhável que é: partir rizado e remover os rizos à medida que isso for possível.
2 – Talvez o mais correto teria sido rizar a grande o mais possível e permanecer assim. Essa vela deveria permitir que, com o máximo de risos, o barco pusesse ainda pudesse velejar sem ser necessário retirar a vela e colocar outra. Mas como não conheço as manobras com topsails e armações do tipo usada pelo Pen Duick, fica difícil definir as práticas mais seguras, mas podemos ter certeza que Tabarly sempre optava pelas manobras mais rápidas em detrimento das mais seguras.
3 – Eric fazia as manobras de velas sem cintos de segurança, sem linhas de vida, sem salva-vidas, sem roupas de tempo, sem equipamentos pessoais de localização na água. Tudo isso à noite e em mares com temperaturas baixíssimas.
4 – Ao fazer a remoção da vela grande, Eric orientou o timoneiro a não colocar o barco no vento. No texto é dito que fazia isso para não perder tempo. Mas ele não estava em regata e colocar o barco no vento parecia ser a atitude mais, tanto que o timoneiro insistiu em perguntar se devia fazer isso, sendo orientado em contrário por Tabarly.
5 – Pela descrição da cena quando ocorreu o acidente, vê-se que Eric Tabarly estava de pé sobre o convés do barco, fazendo a descida da vela grande. Em outro trecho da narrativa, Eric trabalha sobre o gurupês para remover uma buja. Tudo isso evidencia que não existia no Pen Duick qualquer preocupação em fazer as manobras de dentro do cockpit, que realmente é a forma mais segura de trabalhar com as velas. Nada de enroladores e sistema de rizos comandados por cabos que terminam dentro do cockpit. Na verdade, Pen Duick era um barco centenário e seus equipamentos também. Uma pena que isto comprometia a segurança, e por isso o barco tinha de ser muito bem tripulado. Foi temerário ter uma tripulação amadora naquela noite terrível.
6 – A tripulação não era experiente para as condições da travessia. Não estava treinada para as manobras, tanto que era Eric, com seus 66 anos, que fazia as operações todas. Seria aconselhável que o comandante sempre ficasse no leme, encarregado das decisões, enquanto um tripulante mais jovem fizesse as manobras.
7 – A tripulação não estava treinada para fazer a operação de recolher um homem ao mar. Ela demorou muito mais que o necessário para retornar ao ponto da queda de Eric no mar. É aconselhável que tripulações façam treinamento de homem-ao-mar quando se parte para travessias, especialmente as que tem trechos noturnos. No caso de casais velejadores, é comum que o comandante faça quase tudo e sua companheira sejam mera coadjuvante. Mas seria bom que eles treinassem a sequencia de manobras se ocorresse (batamos 3 vezes na medeira!) do comandante cair ao mar:
A – folgar todas as escotas
B – apertar o botão MOB do GPS (que tem de estar ligado o tempo todo, em o cockpit)
C – jogar o boia circular com facho Holmes ao mar (que tem de estar só pendurada no guarda mancebo, e não amarrada)
D – ligar o motor
E – motorar até o ponto mostrado pelo GPS, onde o comandante deve estar tranquilamente esperando.
8 – O barco não tinha um motor adequado para navegar no Mar do Norte. O motor era de pouca potencia, o que fez o barco demorar 3 horas para voltar ao ponto do homem-ao-mar. Em outras palavras, o motor não era considerado um item de segurança.
9 – O barco não tinha um rádio VHF fixo operativo. Usou-se sempre um VHF portátil, que descarregou rapidamente, o que impediu o socorro de chegar mais rapidamente. Os itens 7 e 8 só teriam algum sentido se Eric estivesse vestido adequadamente, com roupas que permitissem uma sobrevida maior dentro d’água, o que não era o caso.
10 – A quantidade de combustível a bordo não era suficiente para uma motorada maior, como no caso de uma quebra de mastro.
 

10 Respostas para “As lições deixadas por Eric Tabarly

  1. Como as coisas mudaram em todos os ramos das atividades humanas e até nossos heróis que jamais se renderam à segurança de um cinto, de um capacete, de um localizador, de uma luva que seja, de protocolos de segurança acabam como os heróis gregos! Como diz o comandante Aleixo Belov, numa tragédia com certo romantismo. Imaginando Eric Tabarly em seu veleiro centenário com mais de meio século de vida -ele mesmo- a conclusão que podemos chegar é que de alguma forma ele queria se proteger de uma morte lenta nalgum leito de hospital ou coisa parecida. Um herói que morreu fazendo o que fazia de melhor, da maneira como sempre fez. Não havia outra maneira dele partir… Mas hoje não cabe mais esse tipo de atitude, em vez de herói a vítima seria considerada outra coisa…
    Um abraço a todos.

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  2. Luiz, seu texto é excelente para nós vamos ao mar. Mas percebo que é uma relação diferente daqueles que SÂO o mar, que se compõe com ele a tal ponto, que a morte é uma palavra com sentido diferente, se for relativa ao mar. Dorival Caymi musicou o sentimento de homens do mar da bahia: “é doce morrer no mar”. Tenho a impressão que era o caso do Eric. Abraço. Gustavo

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    • Interessantíssimo seu comentário Gustavo, a diferença dos que “vão ao mar dos que são o mar”, eu ainda que tão pouco vou ao mar, mas achei ótimo o conceito, não coloco como definição para não encerrar a ideia. Nessa linha de pensamento imagino o clero dizendo a Colombo. a Cabral, e a tantos outros que a terra era quadrada, no final um abismo e dentro demônios e monstros devoradores que deveriam temer!
      Os grande ali, ouvindo e pensando que o que eles deveriam ou não temer não seria outro homem quem iria dizer, que precisavam apenas ir lá para ver.

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  3. Haroldo Quadros

    Parabéns Luiz pela ótima matéria sobre um dos maiores riscos para quem veleja. Transcrevo a seguir trecho do que o velejador André Magalhães Homem de Mello escreveu sobre o assunto, no livro DIÁRIO DE BORDO, à página 131. “… Infelizmente, o corpo de Tabarly não foi encontrado e, 48 horas depois do acidente, Tabarly foi dado como morto. Trinta e seis dias depois do acidente, seu corpo foi encontrado na rede de pesca de um trawler Bretão. “The sea returned the man” (o mar havia retornado o homem). Haroldo Quadros. Salvador- Bahia.

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  4. Muitos acreditam que Tabarly queria que essa fosse sua ultima viagem e assim a fez.
    Morre o homem e fica a lenda. Se assim foi, tem que ter coragem!

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  5. Muito interessante saber como foi que ocorreu o acidente de Tabarly. Parece bastante claro que vários erros foram cometidos. Mas é também bastante claro, pra mim, que os erros são muito mais evidentes depois de ocorridos. Acidentes acontecem. Certamente podemos e devemos tentar evitá-los. Mas, quem vai ao mar corre riscos, fatalmente. Quem utiliza veículos automotivos corre riscos… quem caminha corre riscos… e quem vive corre o risco de, de uma forma ou outra, morrer. Se alguém atravessa o oceano em um pequeno barco aberto a remos, é considerado um grande marinheiro. Se naufraga chovem críticas e conclusões do que não deveria ser feito…Slocum navegou muito, naufragou, navegou mais, e morreu no mar. Moitessier naufragou várias vezes… e muitos outros grandes navegadores naufragaram… O barco de Tabarly era veleiro de verdade, de um velejador verdadeiro… nao faria sentido instalar enroladores em suas velas… é um veleiro tradicional… nem pensar em tomar rizos na vela mestra do cockpit… isso é coisa pra veleirinho moderninho, desses de plástico, com fundo chato, levinho… o Pen Duick é barco pra tripulação, dois no pé do mastro, um no leme e vamos lá! Certo, Tabarly poderia ter nos poupado da tristeza de vê-lo partir dessa forma, trágica, mas era um homem duro e autêntico, como seu barco. Sempre foi exímio marinheiro. E como grande marinheiro que navega muito, fez sua passagem para o outro lado… no mar. Duro e triste. Mas verdadeiro. A vida é dura e tem dessas coisas. As pessoas vem e vão. Um incidente aconteceu e lhe antecipou a sua passagem. Mas ao longo de toda uma vida navegando fez infinitas manobras acertadas, ao seu estilo.

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    • diariodoavoante

      Juliano, muito bom seu comentário. Instigante e cheio de reflexões valorosas. Gostei e concordo com todas as letras. Um grande abraço, Nelson

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  6. Também não conhecia os detalhes da queda de Tabarly, apenas seu desaparecimento dramático em manobra de navegação, mas pelo conteúdo complementado neste texto acredito que o lado romântico assim foi melhor preservado como certamente homem do mar queria. Agora o texto traduzido pelo Luis Sergio é de grande utilidade, didático e pedagógico para os tempos modernos em que o velejar é e deve ser de fato muito mais seguro e técnico. Eric Tabarly, Bernard Moitessier, Robin knox-johnston e outros de nossos heróis ainda vivos dos tempos dos veleiros de madeira certamente tem ou tiveram dificuldade de adaptação de uso aos novos confortos, técnicas e equipamentos de segurança. Seus contatos com o mar provavelmente foram mais intensos, rústicos, viscerais, mano a mano, houve mais doação, a água salgada incorporou-se ao sangue de forma definitiva, infiltrada no DNA. Por fim vejo no seu mergulho e depois a devolução pelo mar de seu corpo a coroação final dessa simbiose em vida como reconhecimento de respeito deste mesmo oceano aos amigos, admiradores e familiares pelo ser terrestre que lá se sacrificou.
    Acredito enfim que o sacrifício de Tabarly foi pedagógico, talvez mesmo premeditado. Desprezando a segurança, sabia que seus críticos tinham razão e sua entrega final seria o maior ato de doação, o maior argumento para que as normas de segurança fossem definitivamente adotadas pelos seus seguidores e fãs velejadores espalhados pelo Globo.

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  7. tabarly era (e sempre foi) uma espécie de “chuck norris” do mar.
    lamentável mas, ao mesmo tempo, quase inevitável, que tenha acabado como acabou.

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