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Homem ao mar

HOMEM AO MAR

Numa manhã de sol, sob a sombra de um palhoção de clube náutico, caiu sobre a mesa o assunto “homem ao mar” e um velejador, desses que só vai ao mar em anos bissextos, se não chover, disse que isso não era problema que preocupasse um bom comandante, porque o resgate era a coisa mais fácil do mundo. Alguns participantes do bate-papo tentaram argumentar, mas o soberbo não deixou barato. Apenas observei o moído e preferi me entreter com a cerveja estupidamente gelada e com os toros da apetitosa costela saindo da churrasqueira. No dia seguinte fiquei sabendo que o ilustre comandante tampa de crush, certa feita lançou uma defensa ao mar, para mostrar como fazer o resgate de um tripulante, e nunca mais recuperou o equipamento, por mais que tentasse. Felizmente a experiência foi com uma defensa – equipamento de borracha usado para proteger os bordos, proa e popa de uma embarcação. Pois é, a manobra homem ao mar não é uma operação fácil e a cada milésimo de segundo torna-se complicada e torturante. Deveria ser manobra treinada a exaustão, principalmente em mar de agitação moderada e forte. Não basta simplesmente olhar e decorar o traçado da ilustração acima, porque na hora da verdade a verdade é outra.          

B.O.

BO

Um acidente entre uma balsa e um veleiro nas águas amazônicas me faz recordar vários outros que presenciei e tive conhecimento durante os anos que vivi a bordo do Avoante, descendo e subindo o litoral do Nordeste brasileiro.

O veleiro Matajusi, que fazia o rumo da volta, após participar do BRally Amazon, uma aventura de 500 milhas náuticas pelos rios e afluentes que banham a grande Floresta, foi abalroado por uma balsa, enquanto ancorado, em frente a uma marina, em Belém do Pará.

Pelas informações recebidas, graças aos deuses protetores dos navegantes, a “barruada” causou apenas danos materiais reparáveis, algumas trocas de farpas amaciados pela mata e um grande susto que quando lembrado provocará arrepios na espinha.

No final de 1998, ano em que fui picado pelo vírus que povoa as entranhas dos veleiros, em frente ao Iate Clube do Natal, havia um veleiro azul, de bandeira francesa, com uma enorme placa de ferro tapando um rombo na lateral do casco. Fiquei sabendo que o veleiro havia sido abalroado, durante a madrugada, por uma balsa que fazia a travessia de automóveis entre a cidade do Natal e a praia da Redinha. O acidente foi traumático, por uma fração da sorte não causou vítimas fatais e o veleiro só não foi a pique por agilidade dos envolvidos em direcioná-lo para as águas rasas da margem do Rio Potengi.

Aberto o inquérito pela Capitania dos Portos do RN, que atestou a culpa do comandante da balsa, a peleja levou anos – se não me engano, mais de dez anos – até ser desalinhavada e o reparo ser executado. Durante o longo período de imbróglio a empresa proprietária da balsa bancou o aluguel de uma residência, próximo ao clube, para a família francesa.

Nos preparativos de uma Refeno – Regata Recife Fernando de Noronha, o lendário catamarã baiano Adrenalina Pura, que até os dias atuais detém o recorde da prova, com pouco mais de 15 horas para navegar a distância de 300 milhas entre Recife e Noronha, estava todo serelepe, brilhante e embandeirado no fundeadouro do Cabanga Iate Clube de Pernambuco, quando uma lancha, ao fazer uma manobra de atracação, entrou como um míssil na banana de bombordo do Adrenalina, abrindo um rombo considerável no casco e tirando do barco baiano a chance de bater seu próprio recorde.

O comandante da lancha até tentou se desculpar alegando falta de freio, mas daí o frevo foi grande e os insultos podiam ser ouvidos muito além do Marco Zero. A turma do abafa entrou em ação, os guerreiros do Axé e os caboclos de lança do Maracatu se aquietaram, a coordenação da prova se apressou em adiantar o chopp e as nuvens de tempestade se dissiparam quando o batuque do bumbo anunciou a entrada no recinto dos bonecos de Olinda.

A turma da resenha, no palhoção do Cabanga, conta que certa feita um veleiro monotipo entrou feito um torpedo no casco de uma lancha – será que o caso do Adrenalina foi revanche? – e assim o velejador passou a ser conhecido como Torpedo e um sobrinho, dele, ainda menino, herdou a alcunha no formato diminutivo. Veja bem, viu doutor Torpedinho, apenas estou contando o conto de um “muído” contado. Mas se quiser zanga, lhe aguardo no sombreado de uma certa cabaninha em Enxu.

Um velejador potiguar comprou um trimarã, precisando de uns “ajustes”, e se danou na reforma. Meses depois quando colocou o barco na água para tirar a prova dos nove da reforma, convidou um colega para participar do teste. Ao iniciar a velejada o colega percebeu que a cabine reformada estava impedindo a visão da proa, o que imediatamente foi contestado sob alegação que era assim mesmo, que para olhar a proa bastava levantar e olhar ao longo dos bordos. Para comprovar o que dizia, ficou em pé e no segundo seguinte estavam os dois jogados sobre o convés, com os olhos arregalados, sem saber o motivo do estrondo e muito menos em que haviam batido.

Ao se refazerem do susto, desnorteados, viram que o barco estava trepado em uma boia encarnada do canal. Avaliaram o estrago, se desvencilharam e voltaram ao clube. O proprietário emburrado, soltando impropérios ao vento, e o colega dizendo: “Bem que falei que não dava para ver a proa”. As más línguas no palhoção contam que a Marinha batizou aquela sinalização como Boia de Cláudio. Não vi nada oficial, mas já que dizem…

Foi num moído assim que um gringo, ao se envolver em uma batida de trânsito numa avenida brasileira, desce do carro e diz: – Hello!! O brasileiro olhando o estrago em seu carro responde: – Relo nada, amassou foi tudo!

Nelson Mattos Filho

Mar de azeite

FLAVIO REZENDE ONDAS

Desde que embarquei nos segredos e manias do mundo da navegação escuto falar que basta jogar um pouco de óleo no mar para que as ondas se acalme como um passe mágica, pois assim faziam os navegantes da Grécia Antiga. Como o assunto sempre era discutido sob a sombra do palhação do Iate Clube do Natal, ou ao redor da churrasqueira ornamentada com deliciosas picanhas gordas e várias rodadas de cervejas geladas para dar pressão, no final da farra ficava imaginado a cena e me perguntando o porquê do amigo Zeca Martino não ter utilizado a técnica em minha primeira tentativa de velejada oceânica, entre Natal e o Atol das Rocas, a bordo do veleiro Delícia. Pense num mar de faroeste!

Dia desses li uma matéria sobre a “técnica infalível”, no blog Meio Bit, e revivi saudosamente aquela velejada de maluco, várias outras em mar de pancadaria e mais uma vez me perguntei os motivos que nessas horas nunca lembramos dos ensinamentos gregos. Aliás, a matéria assinada pelo colunista Carlos Cardoso é interessante, não faltou nada do que era falado nos encontros etílicos-gastronômicos do clube náutico potiguar, porém, o mais arretado foram os comentários dos leitores.

Teve quem apostasse que o óleo derramado nas praias do Nordeste, em agosto de 2019, foi jogado por alguma embarcação que estava sofrendo em alguma tempestade ou mesmo por culpa de algum marinheiro estagiário que esqueceu a válvula de óleo de tempestade aberta. Outro leitor deu a dica que bastava substituir a água do mar por azeite para as ondas se acalmarem. Pensando bem, essa ideia é boa e poderia resolver definitivamente o problema do avanço do mar, porém, a bronca seria encarar a ira dos surfistas.

Outra feita navegávamos entre Natal e Cabedelo/PB, sob um mar mais macio do que gramado de casa de rico, e Lucia comentou que o mar deveria ser sempre daquele jeito. Pedrinho de Lucinha, cabra bom indo e voltando, respondeu na bucha: “Prestava não, porque teria engarrafamento de barco”.

A história do óleo para acalmar as águas começou quando um pescador grego observou que quando havia óleo na água ele conseguia enxergar com mais nitidez o fundo do mar e assim coletava mais ostras. Passou a mergulhar com a boca cheia de azeite, que ia liberando aos poucos. Outros pescadores seguiram a técnica e outros óleos foram usados, óleo de baleia, linhaça, óleo de peixe, coisa que chamou atenção de estudiosos famosos como, Aristóteles, Plutarco, Plinio e Benjamin Franklin. Eles notaram que o óleo fazia diminuir as ondulações e com isso aumentava a visibilidade. Contam que pescadores portugueses jogavam azeite na barra do rio Tejo, para acalmar a arrebentação, antes de se fazerem ao mar.

Em meio as ondas azeitadas tem histórias e estórias para todo gosto. Até o navegador Amyr Klink deu testemunho sobre o assunto dizendo que usou a técnica quando de sua travessia remando pelo oceano Atlântico e aprovou. Fico imaginando Amyr contando essa passagem sob o sombreado de uma barraca de pescadores na Praia de Enxu Queimado. O moído ia ser grande!

Nos anais da navegação consta que até pouco tempo vários países exigiam, como item de segurança, que as embarcações tivessem a bordo uma lata de “óleo de tempestade”. A poderosa Marinha Inglesa largou de mão a exigência em 1994 e em alguns sites de equipamentos náuticos o óleo de tempestade ainda é oferecido.

Esse moído me faz lembrar a piada do fiscal da Receita Federal que foi vistoriar uma fazenda. O fiscal deu uma carteirada e sem mais delongas se dirigiu ao curral dizendo que iria contar o gado. O fazendeiro tentou argumentar, dizendo que o touro bravo estava solto e perguntou se poderia acompanhá-lo. O fiscal fez cara feia, rechaçou a companhia e seguiu em direção ao curral. O fazendeiro levantou os ombros, acendeu um cigarrinho de palha e sentou na varanda. Em menos de dois minutos aparece o fiscal correndo, gritando e pedindo ajuda, com o touro em seu encalço. O fazendeiro deu uma gargalhada e gritou: Mostre a carteira pra ele! Mostre a carteira!

Pois é, quando escuto o relato de navegadores, que se esmeram nos compêndios teóricos, contando os perrengues enfrentados em um mar de amansar doido, dá vontade de perguntar: Por que não jogou um fiozinho de azeite?

Nelson Mattos Filho

Com o passar dos anos, faróis se apagam

DESENHO DE FAROL ELO7

Tempos atrás meu irmão Iranilson, enviou-me um artigo de autoria do sociólogo e escritor Marcelo Coelho, publicado na Folha de São Paulo, em 09 de janeiro de 2019, e desde lá guardo com bastante carinho. O texto serviu de base para o artigo, Das coisas inúteis, postado aqui em 03/10. Remexendo nos arquivos do meu computador, o farol do Marcelo voltou a emitir lampejos e me instigou a enviar email para o escritor pedindo permissão para reproduzí-lo neste blog e fui carinhosamente atendido. Muito obrigado, Marcelo, por presentear os leitores do Diário do Avoante

Como outras vítimas do avanço tecnológico, as “sentinelas do mar” perdem função

O recife de Eddystone fica perdido e invisível em algum trecho do canal da Mancha, e ao longo dos anos foi responsável por incontáveis naufrágios, como o do navio “Constante”, no Natal de 1695.

Era tempo de construir um farol por lá; mas a única rocha que aflorava à superfície do mar tinha metade do tamanho de uma quadra de tênis.

Idealizada pelo inglês Henry Winstanley, a obra durou quatro anos, com o material sendo transportado até o recife em viagens de barco a remo, que demoravam doze horas de ida e volta.

Os trabalhos estavam a meio caminho quando um aventureiro francês (Inglaterra e França estavam em guerra naqueles anos) sequestrou o construtor.

Levado à presença de Luís 14, Winstanley recusou-se a trabalhar para o inimigo.

O rei poderia tê-lo executado na hora; foi magnânimo. Mandou-o de volta à Inglaterra, para que continuasse a construção do farol. “Estou lutando contra a Inglaterra, mas não contra a humanidade”, disse Luís 14.

Nada mais apropriado a um soberano conhecido pelo apelido de “rei-sol” do que revelar-se amigo dos faróis.

Mas a construção de Winstanley não durou muito; subestimara-se a força das tempestades e, naquela época, o grosso da estrutura de um farol costumava ser feito de madeira.

Outro farol, no mesmo lugar, foi roído por cupins e terminou incendiado. Cinquenta anos depois, uma torre de pedra tornou-se capaz de iluminar o caminho dos veleiros.

Durou um século, até que a erosão do mar comprometeu suas fundações. Em 1882, foi feito um quarto farol, que persiste até hoje.

Outra erosão está em curso, a do progresso tecnológico. Fiz referência, outro dia, à desaparição iminente das chaves –objeto que subsiste inalterado há milênios; os cartões magnéticos também vão sumindo, e em prédios novos você entra em seu apartamento digitando uma senha.

A grande maioria dos faróis vai se mostrando supérflua, graças ao GPS e não sei o que mais.

Acaba de ser publicado na Inglaterra um lindo livro contando a história dos faróis. Reproduzi de “Sentinels of the Sea”, de R.G. Grant, o caso de Winstanley e do farol de Eddystone. 

O livro de Grant não traz quase nada de fotografias –que podem ser lindíssimas—mas é cheio de ilustrações detalhando os projetos de engenharia de faróis alemães, ingleses, noruegueses ou franceses construídos ao longo de dois séculos e meio.

O capítulo que se refere às técnicas de iluminação é dos mais fascinantes.

Uma simples fogueira encimava o mítico farol de Alexandria –que, medindo o equivalente a trinta andares decorados com esculturas e frisos, estava entre as sete maravilhas do mundo antigo. Só foi destruído no século 14.

Também utilizavam fogueiras os faróis romanos, dos quais sobrevive até hoje o de La Coruña, na Espanha. Na Idade Média, foram-se todos apagando; só alguns mosteiros os preservaram, assim como às bibliotecas.

Livros e faróis coincidem por acaso, aliás, numa referência feita por Grant a uma família escocesa especializada na sinalização marítima: o pai e os irmãos de Robert Louis Stevenson dedicavam-se a esta atividade.

Vieram as velas de sebo e as lamparinas de óleo de baleia; mais tarde, as de petróleo. O grande progresso surgiu com os espelhos e as lentes parabólicas, destacando-se aí a perfeição minuciosa das facetas de cristal desenhadas por Augustin-Jean Fresnel (1788-1827).

Fresnel não é desconhecido dos iluminadores de teatro: até hoje existe um tipo de refletor que leva o seu nome. 

Como os mosteiros medievais e os castelos, diz Grant, os faróis são hoje protegidos por associações em defesa do patrimônio histórico, e encontram funções alternativas como centros culturais, lugares para instalações artísticas e locais de meditação.

Um farol no Oregon serve como cemitério vertical, abrigando cinzas dos mortos a uma taxa até que módica, se considerarmos a poesia da coisa toda.

Os mortos, de um lugar igualmente já sem vida, enviam sua luz intermitente a um destinatário anônimo.

Em algum ponto da costa, ou quem sabe em alto-mar, uma pessoa sozinha recebe a comunicação silenciosa, incompreensível, de um sinal que atesta –mentirosamente, agora—a presença humana no meio da noite.

“Estou aqui”, diz o farol. “Eu também”, diz quem o avista no escuro. Mas não se trata de uma resposta. Não houve diálogo; sabe-se apenas de uma presença, de um testemunho –um apelo, talvez, que se troca entre duas solidões, gratuitamente. Já é o bastante.

coelhofsp@uol.com.br

Homem ao mar (MOB)

HOMEM AO MAR

“Homem ao mar é seguramente o momento mais estressante não apenas do iatismo, mas da navegação em geral, pelo que é necessário preparar-se para essas situações e ensinar a equipagem a reagir em consequência.

Você conhece e sobretudo treina as manobras para tal situação? Quando foi a última vez que fez uma simulação de MOB ??

Você será capaz de reagir imediatamente e fazer a “coisa certa na primeira vez”.

Isto pode fazer a diferença entre um resgate bem sucedido e um desastre.”   

Robert S. Mille, no grupo Velejadores de Clássicos

 

É assim!

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No meio náutico, de esporte e recreio, sempre ouvi sonhos serem discorridos com paixão e brilho nos olhos sob o aconchego de varandas debruçadas sobre rios e mar, para em seguida se perderem por entre as últimas gotas da garrafa de bebida servida sobre a mesa.  A frase de Garrett Murray tem manequim universal, mas deveria ser estampada no portão de entrada de todo clube náutico.   

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Das coisas que não precisam palavras

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Meditosos

AULA DE AUTOCONTROLE (2)

Ao ver na página do velejador Felipe Hamaraky a imagem de um monge budista dando um sonoro dedão a algum desafeto no meio da rua, não tive como não dar boas risadas e lembrei de uma peleja que tivemos em Salvador/BA com uma adepta dos segredos da meditação. Aliás, sempre fiquei com uma pulga atrás da orelha ao lidar com aqueles que se arvoram dos ensinamentos das coisas da fé, da alma e saem a pregar paz de espírito, amor, conciliação, bem querer e a dar as duas faces aos tapas e bofetões, mas isso para os outros, porque com eles nunca dá muito certo.

Não tenho certeza, mas como sou avexado a dar pitaco, aposto um pão doce com manteiga e um copo de ki-suco que o monge da imagem, que vira e mexe reaparece nas postagens facebookiana como “exemplo de ternura”, se pegasse de jeito o desafeto, do outro lado da imagem, ria dar uns bons sopapos meditosos.

Pois bem, tempos atrás, numa sexta-feira de Lua cheia sobre o mar da Bahia, combinamos degustar as cervejas cu de foca servidas pelo saudoso João, no micro e aconchegante barzinho da marina Angra dos Veleiros, no bairro da Ribeira, e assim foi feito.

A Lua preguiçosa em sua caminhada e o bate papo gostoso na boa varandinha estirada sobre o mar, davam o tom de uma noite que prometia boas energias, porém, sob o piso de madeira os duendes davam risadas e rabiscavam estripulias.

Entre uma cerveja e outra os assuntos corriam soltos embalados pelo vento noturno e foi aí que num redemoinho, alguém tirou do saco o tema meditação e após os presentes darem suas opiniões, eu, pela via contrária e doidinho para botar lenha na fogueira, pois sou mesmo chegado a ser do contra, tanto é assim que ao assistir, pela TV, uma partida de futebol entre Vasco e Flamengo, olho em volta para ver qual a maior torcida e me posiciono, como torcedor apaixonado, justamente na menor.

Pois bem, discordei quando disseram que no momento da meditação o praticante não pensa em nada, porque a mente entra em um vácuo. – Como assim? – Claro que quem medita pensa, porque na hora que a pessoa se volta para o seu interior está pensando e pensando muito! Rapaz, juro que escutei o riso dos duendes sob o tablado da varada e no instante seguinte a “meditante” disparou: – Você está me chamando de mentirosa? – Eu não, apenas dei minha opinião! Ela disse que há muito fazia meditação e sabia o que estava dizendo.

Vendo o ódio tomar forma no olhar da meditosa, pedi desculpas, disse que para mim era uma surpresa aquela sua confissão e pedi a João, que ria por trás do balcão, mais uma rodada de cerveja. Lucia, pressentindo que o caldo iria entornar, chamou para irmos embora, o que não concordei, porque deixar aquela Lua maravilhosa caminhar sem ser apreciada era uma heresia.

A meditante levantou da cadeira, olhou para Lucia e disparou: “Eu já estava me entendendo com Nelson e você vem se meter no assunto. Sabe de uma coisa, Vá tomar no centro do c…”. Temendo a reação de Lucia, os duendes se recolheram e ela sorrindo apenas disse: “Parabéns, pegou ar!” . A meditosa juntou suas coisas sobre a mesa, deu uma rabissaca e pegou o beco soltando fumaça pelas ventas.

Um frequentador do bar, sentado na mesa ao lado e observando o moído, comentou: “Vixi, esse povo que faz meditação é muito estressado”.

João, traga mais uma!

Nelson Mattos Filho

Diário de um barco

03 - março (2)

Escarafunchando as gavetas encontrei esse texto, que me foi enviado pelo velejador baiano Davi Hermida, em 2013, e parafraseando o autor, que infelizmente não sei o nome, mas desde já parabenizo e peço desculpas em divulgar sem sua permissão, esse é um singelo presente aos amantes do mar.

DIÁRIO DE UM BARCO

Amanheci bem-disposto.

O sol tímido a princípio começava a esquentar meu convés depois de muitos e muitos dias de chuva fria e insistente.

Adoro essa sensação de bem-estar, de vida, de preguiça e contrastando boas navegadas.

Sou um veleiro.

Poderia ter sido uma traineira, uma escuna ou até mesmo um saveiro. Tive sorte de meu criador, meu primeiro dono querer a sensação de liberdade, de vento no rosto, de não barulho dos motores e principalmente da vontade de se desapegar do dia a dia nervoso dos grandes centros.

Depois que nasci nos meus 23 pés, sou pequenino, mas forte, e nem sou tão jovem assim, já completei a maioridade, tenho 23 anos. Nem me importo com essa história de faixa etária. Dizem por aí que as embarcações não têm idade, sua alma é eterna, vivem sempre na imaginação dos humanos.

Já morei em rios, canais, enseadas, pequenas baías, grandes baías e vários outros lugares. Um de meus donos certa vez me levou para um lago. Não deu muito certo. Não gostei daquela água doce. A densidade era diferente e tantas eu aprontei que me levaram de novo para o mar.

Fiquei em poitas soltas no oceano, amarrado em trapiches, em canais flutuantes, em diversas partes do mundo. Eu disse mundo sim. Sou pequeno e atrevido. Já singrei vários mares por esse mundo afora.

Hoje moro em uma marina. Tem seus prós e seus contras. Encaro como mais uma etapa de minha vida.

Quando morei próximo à foz de um rio, reclamava muito da correnteza que sobressaltava-me a noite inteira. Sempre passava fria em baixo do meio casco e por diversas vezes me desgarrei de onde estava fundeado. Não gostei desse tempo não!

Uma vez, fizeram uma reforma em mim em um país tão frio que as embarcações ficavam em seco na época do inverno. Não tinham para onde ir, era um saco…

Um barco fora da água é igual a um peixe. Morre de tédio e sem respiração.

Em outra oportunidade vivi em um local que ventava tanto que meu mastro sempre ficava vergado. Até sem velas ele vergava. Ao menos eu tinha essa sensação. Meu dono naquele período era um cara valente. Gostava de velejar. Dava o máximo de mim. E eu correspondia correndo ou velejando como preferirem de um lado para outro com um sorriso maroto em meus bigodes que eram feitos pelas ondas do mar.

Em outra ocasião, fiquei tão sujo, mas tão sujo e quase abandonado que era horrível olhar para os lados e ver belos iates limpinhos e reluzentes. Tinha vergonha. Minha barriga tinha tanta craca que os peixinhos vinham beliscar e me faziam rir muito. Barco também sente cócegas. Não dizem por aí que os velejadores quando querem vento coçam o pé do mastro? É verdade! Nós rimos tanto quando fazem isso que os deuses dos ventos vêm nos socorrer e mandam umas lufadas legais para continuarmos a velejar.

Nessa época de sujinho, meu proprietário não era mau sujeito não. Ele não tinha tempo nem dinheiro para contratar marinheiros para me limpar. No entanto era um conquistador.

Sempre haviam jovens belíssimas em meu interior. Ao menos interior ele mantinha limpo. O problema era que também apareciam algumas peruas que me furavam com seus saltos altos. Não tiravam o sapatinho de forma alguma. Aquilo me machucava. Eu também me vingava. Assim que elas cutucavam com o salto eu me inclinava de um lado para o outro bem rápido e elas caiam em meu convés.

Meu dono gostava. De vez em quando ele conseguia segurá-las antes de cair.

Hoje, como disse acima, moro em uma marina. É legal! Estou cheio de equipamentos novos, tenho até TV à cabo instalada. Posso ver a novela das 8horas. Estou limpinho. O marinheiro que agora me cuida, usa até aspirador de pó no meu piso. Ele fica uma fera com os gatos que teimam em dormir no convés e sujam tudo. As gaivotas são um caso à parte, já escutei ele resmungar que tem vontade de apertar o pescoço de todas elas pois fazem cocô em cima de mim.

Hoje tenho um monte de amigos em volta. São barcos antigos, novíssimos, de última geração. Tem barco que não se precisa nem mais navegá-lo. Ele se navega sozinho. Dizem que basta apertar um monte de botões que eles têm dentro. Eu não acredito!

Estou feliz! Mesmo que existam aquelas crianças mal-educadas que jogam pedrinhas em cima de meu casco. Os pais não fazem nada. Olham para um lado e para o outro e não tomam nenhuma providência. Dói gente, dói muito!

Minhas velas estão novinhas e minha relação com meu amo e senhor é meio de amor e ódio. Ele não tem “tempo”. Vem me ver somente aos finais de semana. Cuida de mim. Dorme comigo e às vezes veleja. Acho que ele tem medo de sair sozinho comigo.

Eu preciso velejar mais! Grito! E ele não me escuta. Preciso continuar minha jornada e seguir sempre em frente procurando novos lugares e mostrando aos meus ocupantes que a vida não é só trabalho.

Tem um mané, que dizem ser mecânico, que maltrata muito minhas entranhas. Quando ele chega tenho certeza que vou ter algum ataque de nervos. Ele mexe, remexe e sempre diz ao meu amigo que preciso trocar a rebimboca da parafuseta. Não sei o que é isso não! Fico preocupado! Será que é grave?

Caro diário. Vou me despedir por hoje. Esse é um pedaço da vida de um barquinho.

Tento levar meus amigos e ocupantes a salvo de um lugar para outro com muita segurança e carinho. Tento mostrar as pessoas que navegar é preciso, graças a Deus. Passo meus dias sonhando em pegar ondas gostosas e ventos bastante frescos.

Todas as noites sonho colorido. Vejo pessoas entrando e saindo de minhas dependências, colocando gelo nos compartimentos, abastecendo minhas despensas, pois assim tenho certeza de boas navegadas nesses mares de almirante levando também sonhos de pessoas que necessitam sonhar.

E vou parar mesmo. Chegou uma lanchinha que é uma gatinha aqui do meu lado e acho que piscou para mim.

Tchau!!! Fui!!!

Rumos cruzados no Museu do Mar de Salvador

Tres-Marias-2A imagem que ilustra a postagem é da operação para acomodar o veleiro Três Marias, de 36 pés, lendária embarcação em que o navegador, ucraniano mais baiano do mundo, Aleixo Belov, realizou três voltas, em solitário, pelos mares do mundo, nas dependências de um casarão histórico em Salvador/BA. O navegador de 77 anos, que realizou mais duas voltas ao mundo a bordo do Fraternidade, adquiriu o casarão para transformá-lo no Museu do Mar de Salvador e expor todos os apetrechos, fotos, cartas náuticas, mapas, livros, equipamentos e dividir com o público todas as experiências e conhecimentos que marcaram suas viagens. Até aí o projeto navegava em mar de almirante, sob o comando da Fundação Aleixo Belov, e com data marcada para ser inaugurado no início de 2021, porém, lá no horizonte surgiu a sombra ameaçadora de um pirajá, vento malcriado que é a cara dos mares nordestinos, que fez o navegador dar um rizo na vela grande antes de pôr o barco em capa. O pirajá veio em forma de uma conta mal feita que não levou em consideração os 13,20 metros de altura do mastro do Três Marias, e sendo assim, sobraram três metros acima do telhado e uma peleja endiabrada com os zelosos membros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O velho comandante do Três Marias, escolado nos campos abissais do rei dos oceanos, até que tentou argumentar na esperança de construir uma claraboia no teto do casarão histórico, resolvendo o imbróglio e o veleiro ficaria, sem trocadilho, armado. A esperança foi abatida em voo pelos arquitetos do IPHAN, que deram duas opções: Ou cortam o mastro ou colocam o bicho deitado ao lado do barco, noves fora nada. Pronto, a guerra naval está formada e contam, em volta dos tabuleiros das baianas, que o Senhor do Bonfim já convocou todos os santos e todos os Orixás que protegem a Bahia, para reunião de máxima urgência. Vamos aguardar, mas de uma coisa eu sei, mexer com gente do coração de Netuno e Iemanjá num é coisa boa não, porém, o armengue no teto do venho casarão ficaria feio sim e os encantados sabem disso.